2 DE FEVEREIRO — Quando acordei, a amendoeira ainda floria em mim. Meu sangue latejava em ritmo musical, cheio de júbilo, tristeza e nostalgia. Seu nome, querida Mariô, pairava sobre ele como uma gaivota sobre o mar. Ah! Como gostaria de ter tempo — e ânimo — para traduzir esse ritmo em palavras, transformando-o num poema! Uma canção bailava em meus lábios e eu dizia: “Ah! Deixem-me em paz hoje, com um lápis e papel!”
Mas o clarim soou o alarme, apanhamos os fuzis. Os rebeldes assomaram a ponta do nariz no cume das Águias, onde estão entrincheirados há meses sem que se consiga desalojá-los. Cumpria matar-se mutuamente. Na hora em que lhe escrevo já é noite, regressamos exaustos, ensanguentados. As perdas de ambos os lados se equivalem, sem o mínimo resultado, nem para eles, nem para nós.
Correu sangue por nada. . .
Quando Homero descreve os combates dos aqueus e troianos, quando lemos o relato de suas agonias, experimenta-se uma alegria soberana, nosso espírito ganha asas, porque um grande criador soube extrair de um massacre o canto inimitável. Parece então que aquelas vítimas não são mais homens e sim nuvens de formato humano, insensíveis à dor, que se afrontam no meio do éter imarcescível, num simulacro de combate. E o sangue derramado tem a cor púrpura da noite. A poesia não estabelece diferença entre o homem e a nuvem, a morte e a imortalidade. Mas quando tudo se passa sobre a terra e os guerreiros possuem um corpo verdadeiro, composto de carne, osso e pelos, e dotado de alma, que coisa atroz é a guerra, meu amor!
Parte-se para a batalha com o propósito de não odiar ninguém, de se dominar, continuar humano, mesmo em plena carnificina. Porém, ao ter de defender a própria vida, sente-se no âmago de si mesmo uma fera negra e felpuda que acorda, como um longínquo antepassado esquecido. Nosso rosto humano cede lugar à máscara do gorila, nosso cérebro se converte numa bola de sangue entremeada de pelos. Começa-se a gritar: “Todos à frente, vamos matá-los!” Mas esses gritos não são nossos, embora saiam de nossas bocas. Não são gritos humanos. O próprio metatipo recua apavorado diante desse ancestral das profundezas: o gorila.
Às vezes sou acometido da nostalgia de me deixar matar para resguardar o que me resta de humano e escapar à brutalidade. Mas você me prende à vida, resigno-me. Digo- me que um dia este massacre terá de acabar e poderei abandonar a pele de gorila: a farda, os coturnos, o fuzil.
Então, Mariô querida, voltaremos a Súnio, de mãos dadas, para recitar os versos imortais da Ilíada.
- Excerto de "Os irmãos inimigos", Nikos Kazantzakis, Nova Fronteira, 1965.
Nenhum comentário:
Postar um comentário