terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cecília Meireles

GENTE DESAPARECIDA
O POETA PORTUGUÊS Carlos Queirós, querido amigo, já desapareceu deste mundo há vários anos, para nossa melancolia e saudade. Mas em 1935, quando ainda estava presente, publicou um livro a que dera o nome de Desaparecido e que começava assim:

“Sempre que leio nos jornais: “De casa de seus pais desapareceu...” Embora sejam outros os sinais, /Suponho sempre que sou eu.”

O poeta sonhava ir, jovem e independente, por seus próprios caminhos, à procura de um destino autêntico, e ser um “feliz desaparecido”, mesmo quando ventos contrários atormentassem a rota do seu veleiro. Por amor a essa aventura de partir para o mistério — herança náutica de seu povo — alegrava-se com a ideia de tal evasão, certamente mais no plano simbólico do sonho do que no da realidade física e imediata.

Mas por que desaparece tanta gente, todos os dias, em redor de nós, sem que possamos admitir que esses desaparecimentos sejam de origem lírica?

Ouço pelo rádio as famílias, os amigos, os conhecidos que indagam, inquietos, que reclamam,
descrevem, dão sinais, indicam pistas. Há desaparecidos de todas as idades e cores, e ambos os sexos, das mais variadas condições sociais: quem tiver notícias de seu paradeiro é favor informar às pessoas aflitas que os procuram.

Mas quem vai saber o paradeiro da mocinha de blusa cor-de-rosa e saia amarela que, assim colorida, bateu asas sem se despedir dos parentes? Quem viu o menino de blusão verde e sapatos novos que saiu de casa pela tardinha e lá se foi andando — e irá andando enquanto tiver boas solas nos sapatos — por muito que os pais inconsoláveis o estejam chorando e os vizinhos não possam entender tamanha ingratidão? Que foi feito da velhinha, um pouco desmemoriada, que saiu para a missa e depois entrou por um caminho desconhecido, com seu vestido cinzento, sua bolsinha de verniz e duas travessas no cabelo?

Há os desaparecidos recentes: de ontem, da semana passada, de há um mês ou dois. Assim mesmo recentes, não se encontram vestígios seus em parte alguma. Foram raptados? Ficaram debaixo do trem? Subiram para algum disco-voador? Afogaram-se? Partiram para o secreto paraíso onde não querem ser importunados? Embarcaram para Citera? Quem sabe o que lhes aconteceu?

Mais comovente, porém, é a busca de desaparecidos antigos: “Procura-se uma conhecida que há três anos não se encontra...” Para onde foi a jovem Marília que há cinco anos disse que ia trabalhar no Rio de Janeiro?.. . Que é feito do rapaz moreno, com um sinal no queixo, que usava um cordãozinho de ouro com a imagem de São Jorge?

Todas essas pessoas e muitas outras estão sendo procuradas, pacientemente, com anúncios pelos jornais e nas emissoras. Uma incansável busca. Gente de todos os Estados do Brasil, gente com vários compromissos: eram noivos, eram chefes de família, eram donas de casa... Gente miúda, que não se esperava fosse capaz de meter-se em aventuras: meninotas e rapazinhos em idade escolar; mocinhas que pareciam tímidas e assustadas, moços ainda sem emprego...

Pois desapareceram. Para onde foram? Isso é o que se deseja saber. Não quiseram mais nada com pai nem mãe, avós nem irmãos, casa, comida, sono, afeto — nada. Desejaram sumir, sumiram. Ou foram arrastados violentamente e não tiveram forças para resistir. Talvez se sintam mais felizes. Talvez estejam arrependidos e envergonhados. Talvez não existam mais. Pode ser que um dia voltem.. . Pode ser que, por enquanto, estejam dando a volta ao mundo num veleiro imaginário.. . Pode ser que já estejam cansados. Pode ser que não se cansem jamais .. . Enquanto não regressam, boa viagem, senhores desaparecidos! Se não regressarem, boa viagem, também!

Mas os afetos vigilantes continuam, inconformados, a recordar os ausentes — todos os dias novos, todos os dias mais numerosos — e, por humildes lugares, famílias tristes cultivam longos canteiros de saudades.

[In Escolha o seu sonho, 6a. ed., Record, Rio de Janeiro, s/d, pp. 47-49]



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