VERSÃO DE DESERTO
Trazido não sei por que apelos, urgências
Vieste impugnar o momento que me cerca.
Demora — conclamas — a clara voz em minha boca.
Peço-te porém que repares:
não agonizam dunas nestes campos.
Aqui não jazem ossadas sem registo
nem apodrecem espectros de
perdidas caravanas.
Nenhum trilho foi abandonado
e não reneguei
Não, não reneguei
o nome do pai do meu pai.
O meu deserto é a vertical semente de um barco.
O areal (seu brilho de nada e de lago)
não é senão a metáfora de uma horta
talvez uma projectada cisterna.
Esta claridade nos olhos do griot cego
este reflexo que obscurece a luz do dia
não irradia de um céu empedernido —
a minha fome não é a maldição
do velho deus inclemente.
E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha
e tenho por estigma
a memória de um longo fratricídio.
Mas estou aqui
sob este sol que alucina
a savana ao meio-dia.
Aqui, sob este toldo rasgado
onde envergo a sede dos meus ossos
e perduro sem jardim nem chuva
sem tambores nem flauta
sem espelhos,
companheira do tempo que amarra
as minhas veias ao umbigo do poço.
Não, nenhum trilho foi esquecido
e venero o profano nome do pai do meu pai.
Lenta a vertigem vai esculpindo
os murmúrios de um rio incerto —
planto estacas
em redor da vigília dos meus mortos.
Não anuncio.
Tardo e não prenuncio reino ou abismo.
Não sou mensageira de vãos sacrifícios,
épicas derrotas, novos caminhos.
Aqui onde o inferno acontece
neste lugar onde me derramo e permaneço
inauguro a véspera da minha casa.
O meu silêncio franqueia
o umbral de qualquer coisa.
(In A dolorosa raiz do Micondó, Geração Ed., São Paulo, 2012, pp. 69-71)
sábado, 19 de setembro de 2015
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