quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Isabel Mendes Ferreira

214.

que fazes inês sentada entre os cardos se estes te são cães
desamparados, que água te seca a pele e reduz a osso os
olhos pergunta pedro como se a resposta viesse cheia de
espinhos e de cartas em branco, despeço-me. despeço-me
dos lugares que não vi dos abandonos que sepultei e das
lágrimas que ousaram cozer o pão à sombra de um fogo
sem espólio.________________ e assim se deixou inês
no domínio imperfeito de uma mesa sem lugar marcado
para o rascunho da luz. a trinta e um de maio serviu-se
de um livro de estrelas para salvar o dia que nunca foi
outro nem de ouro nem anteprimeiro dos símbolos,
gratuita inês das rosas mortas a ser história sem esposo
nem despojos, apenas hóspede de um momento que
já era outro, adeus pedro que és rei das pedras e da
prudência imaculada, fica neste lugar binário, ergue-
te maior e mais hino. sobe à palavra vária e faz-me um
verso como epitáfio terno._____________________
que fazes inês assim morta e luminosa se agora não
voltas aos meus braços, nada. nada que antes já era
descoincidente. guarda-me a presença ao centro dos
cardos._____________ que volto pensante e viúva de
mim. lá fora aguardam-me abutres e serpentes, anéis dos
impasses imaginários, a trinta e um de maio veste-se inês
para morrer, já suficientemente morta.

215.

confiar no inefável ser amigo de Deus
apreender o indizível com palavras repetidas ao ritmo
do coração e manter as cinco orações diárias, às horas
prescritas, a fim de conversar com Deus de coisas
práticas__________ António Barahona
como por exemplo perguntar oh deus por onde andas
que andas tão do tamanho de uma porta fechada
onde as crianças de ontem morrem hoje selvagens e
assombrosamente abandonadas... que surdez de nó
cego te faz mudo perante o nome anónimo das árvores
que sangram em cada ruga em cada nervo em cada
dente enterrado no mais obscuro seio seco e rude.
como confiar-te oh deus esta esperança sem coração
se explodes em sono e em leite crivado de fossos e
de fomes, que criança és tu oh deus que esqueces a
folhagem do esplendor, em horas práticas de paisagem
calcinada, corrente de halos abastecida de gramática
ardida e água de sal.________ conversa inútil a um deus
de cordeiros sacrificados, em dia de ser criança, ainda e
já rouca de tanta miséria, esqueci de emendar o caos.

[In O TEMPO É RENDA, Lisboa: Labirinto de Letras, 2014, pp. 144-145]



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