CHOVE SOBRE UM LIVRO DE F. PESSOA
CHOVER não é o que me entristece,
mas que chova sem utilidade, isto é,
que chova sem solução para o estar chovendo também em mim,
que chova audivelmente fora de mim
e em mim chova calado.
Queria que em mim a chuva fizesse barulho
ou se pudesse ver, queria que houvesse trovões,
qualquer coisa de pirotécnico,
qualquer coisa de molhado, capas impermeáveis, por exemplo,
gostaria que houvesse uma espécie de guarda-chuvas por dentro,
guarda-chuvas que abrissem ao contrário
e que tivessem só o forro preto
gruarda-chuvas com as varetas apontadas para o alto, por exemplo,
guarda-chuvas cujo cabo viesse de cima, por exemplo,
e que só servissem para chuvas interiores,
para tempos nublados interiores,
para umidades interiores.
Seria conveniente também que existissem galochas para o íntimo.
Creio que nem por uma coincidência tais apetrechos são negros,
creio firmemente que a chuva é uma coisa de fúnebre,
uma coisa de estar enterrado.
Creio que estar morto é estar chovendo sempre.
Estar morto é estarem chovendo sempre sobre a gente
e a gente sem poder usar guarda-chuva ou capa impermeável ou galochas,
creio que esse é exatamente o desconforto de estar morto,
creio que estar chovendo sobre a nossa face indefesa
é o símbolo de se estar morto,
até nossas mãos cruzadas sobre o peito
e o não poder arredar a água dos olhos
são o símbolo de se estar morto.
E firmemente sei, também e não obstante, que estar morto
é mais confortável,
(e sem dúvida será mais original)
que o estar chovendo na gente;
tudo, com a imensa vantagem de ser eterno.
[In: Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 149]
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
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