GALOS
Quatro horas. De repente,
no azul metálico da noite, a gente
ouve o primeiro galo dar um grito estridente
bem junto ao muro
do mesmo tom azul-escuro,
e logo vem um eco, seco e duro,
de algum lugar distante,
e outro, da cerca logo adiante,
e mais outro, horrendo e claudicante
qual fósforo molhado,
na horta, bem aqui ao lado,
acende, e incendeia toda a cidade.
Notas ferinas
vêm da porta da latrina
e do galinheiro coberto de titica,
e, sempre admirados
pelas esposas excitadas,
os galos testam os esporões afiados,
fixam o o olhar parvo,
escancaram o bico ávido
e soltam o velho grito irrefreável.
Estufam o peito
amedalhado de penas, feito
para dar ordens e espalhar o medo
entre as bobinhas
cortejadas com louvaminhas
e depois desprezadas como galinhas;
das gargantas nuas
espalha-se uma ordem absurda
pela cidade inteira. Um galo nos perturba
em nossos quartos,
lá de um galpão enferrujado
ou de uma cerca feita de velhos estrados,
ou do telhado cinzento
de uma igraja, duplo vivente
do galo de metal do cata-vento,
galos oriundos
dos becos mais imundos
traçando verdadeiros mapas-múndi:
alfinetes vivos
de vidro colorido,
azuis, verdes, laranja, decididos
a proclamar
alto e bom som, e sem parar,
a quem os ouça: "Aqui é o meu lugar!".
Sempre gritando:
"Chega de sonhos! Todos levantando!".
Galos, o que vocês estão projetando?
Na Antigüidade
vocês já combatiam à saciedade
quando ofertados a alguma divindade,
e eram tidos
por "muito aguerridos..."
Com que direito agridem nossos ouvidos
com ordens feras
e nos despertam nesta terra
de amor malquisto, arrogância e guerra?
A coroa feia
na cabecinha altaneira
é vermelha de sangue de guerreiro.
Essa excrescência
soma-se à viril eloquência
de beleza vulgar da iridescência.
Em pleno ar,
aos pares, começam a se atracar.
Eis a primeira pena a voar.
Um, moribundo,
ainda briga, furibundo,
disposto a enfrentar sozinho o mundo.
Outro jaz na calçada,
porém suas penas arrancadas
continuam caindo, ensanguentadas;
seu canto tremendo
já afundou no esquecimento.
Seu corpo se mistura ao excremento,
os olhos duros
abertos, as penas já escuras.
Suas esposas jazem no mesmo monturo.
Maria Madalena
pecou com a carne apenas,
o que, afinal, é falta bem pequena
se comparada
com a de Pedro, cujo pecado
foi do espírito, ali "entre os guardas".
Numa escultura antiga
a cena inteira é resumida:
Cristo olha, como quem não acredita,
para Pedro,
que leva aos lábios um dedo,
petrificado de espanto e de medo.
Mas no intervalo
entre os dois homens sem fala,
talhado numa coluna, vê-se um galo,
e, como lembrete,
a inscrição gallus canit; flet
Petrus. Porém o episódio promete
esperança: Pedro chora,
e suas lágrimas escorrem
galo abaixo, e perlam suas esporas.
Lavado em pranto, qual
uma relíquia medieval,
ele espera. Pedro, coitado, mal
sonha que esses tão
temidos cocorocós hão
de tornar-se um dos emblemas do perdão,
um cata-vento
no alto de cada templo,
e que diante do Latrão haverá sempre
sobre um pilar
um galo de bronze, a lembrar
ao papa e a quem por lá possa passar
que até a fraqueza
do primeiro príncipe da Igreja
foi perdoada, e para que finalmente veja
mesmo o mais cego
que "cocorocó" tem outro emprego
além do simples "eu nego, nego, e nego".
E quando
o dia vem raiando,
uma luz aos poucos vai dourando
na diagonal
os brócolis no quintal -
como que a noite terminou tão mal? -
e além das folhinhas,
doura o ventre das andorinhas
e as nuvens que traçam, retilíneas,
o dia em seu papel.
Já os galos calaram o escarcéu.
E, "para ver o fim", surge no céu
o sol renascido,
fiel como um inimigo
ou como (dá no mesmo) um amigo.
[In Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop, Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 129-137]
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
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