quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Pablo Neruda

19
Do incomunicado,
do ignorante hostil que eu sempre fui
desde antes de nascer, entre o orgulho
e o terror de viver sem ser amado,
passei a dar a mão a todo mundo
e me deixei telefonar sem frêmitos
a princípio, aceitando,
uma voz, um conselho pelo fio,
uma metálica comunicação
até que me afastei de mim eu mesmo
e levantando como diante de um revólver
os braços, me entreguei
às degradações do telefone.
Eu que fui com tato singular
me afastando de claros escritórios,
de ofensivos palácios industriais
só de fitar um aparelho negro
que mesmo silencioso me insultava,
eu, poeta torpe como um pato na terra,
fui me corrompendo até conceder
minha orelha superior (que consagrei
com inocência a pássaros e música)
a uma prostituição de cada dia,
conectando ao ouvido o inimigo
que foi se apoderando do meu ser.
Passei a ser telefinho, telefonino,
telefante sagrado,
me prosternava quando a espantosa
campainha do déspota pedia
minha atenção, minha orelhas e meu sangue,
quando uma voz equivocadamente
perguntava por técnico ou putas,
ou era um parente que eu detestava
uma tia esquecida, inaceitável,
um Prêmio Nacional alcoólatra
que a todo custo queria pegar-me
ou uma atriz tão azul e açucarada
que queria violar-me, seduzir-me
usando um telefone cor-de-rosa.
Mudei de roupa, de costumes,
sou só orelhas,
vivo tremendo de que não me chamem
ou de que me chamem os idiotas,
minha ansiedade resistiu a remédios,
doutores, sacerdotes, estadistas,
vou talvez me transformando em telefone,
em instrumento negro e abominável
pelo qual comuniquem os outros
o desprezo que me consagrarão
quando eu já não sirva para nada
ou seja, para que falem
as vespas por intermédio do meu corpo

[In Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos, tradução de Alexei Bueno, edição, introdução e notas Darío Oses, prólogo Pere Gimferrer, 1a. edição, José Olympio: Rio de Janeiro, 2015, pp. 115-119]

Jordi Feliu

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