sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Leonardo Almeida Filho

NESSAS MANHÃS DE VENTO

Saiba - disse-me o sem-voz - nem tudo é mansidão.
Quando olhares para a boca de um homem velho,
pensa quantos lábios deve ter tocado,
quantas línguas sugado,
quantos sabores provado.
Pensa nos dentes dessa boca de homem velho:
Quanto terá mastigado?
Que carnes, que frutos triturado?
Que mamilos e tetas mordiscado?

Quando fitares a boca de um homem velho,
pensa, jovem leitor, na senectude daquela língua
e nas ordens que terá decretado.
Quantas palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que nãos... a quantos ferido?
Que sins... a quantos acariciado?
Pensa nos verbos no imperativo,
nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos,
nos silêncios engolidos e gritos vomitados.
Quando cravares teu olhar na boca de um homem velho,
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em linho gris,
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos viçosos,
[imprecisos,
em campos da alma fértil e fresca
banhados por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar.
Pensa no hálito-brisa que então partia,
dobrando as flores da vida desejada,
anunciando a chuva definitiva
que levaria a alma-seiva para outras safras.

Quando olhares a boca de um homem velho
e dela ouvires “Filho, o que te aflige?"
Responde, com calma, que teu olhar investiga
o tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se ela tornar a perguntar a ti,
na teimosia típica de um velho,
“Filho, o que te assusta?"
Olha firme para aquela boca, sem medo,
e não deixe que perceba
que nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os fiapos de carne presos naquelas presas.
Beija aquela boca, filho,
é a tua boca repousando no amanhã.

SOL E ESCURIDÃO

Para Ana C. e os suicidas de Copacabana 

Deve ser assim:
quando se salta do décimo segundo andar
não se enxerga o sol
o mundo é negro como o asfalto
que o acolhe num violento abraço
seu aconchego, seu remanso
a rigidez do meio-fio
a sujeira da calçada em obras
um dente ensaguentado na sarjeta

Um céu sem nuvens, azul, despido,
o sol brilhando nas peles oleosas de Copacabana
e Nossa Senhora recolhendo os pedaços
do suicida em sua avenida
Alguns velhos anseiam o sol
por um pouco mais de vida
Deve mesmo ser assim:
Quando se salta do décimo segundo andar
não há outro anseio
que não o brilho da escuridão.

CARTA DE INTENÇÃO

quandeu crescer
vou ser rimbaud-menino-mau
de cueca suja e cara iluminada
dentes sujos da carne do poema
Talvez escreva Cantos
prometo: pecarei na tua lápide
um pouco de Edgar, outro de Álvares
um tanto de Bandeira, outro de Andrades

quandeu morrer, que seja leve
o anjo que virá chamar meu nome
na lista em sua palma desenhada
e que eu, ainda lúcido, questione
a cor das asas e da hora-madrugada.

(In Babelical, Ed. Patuá, SP, 2018)

Foto by Gregory Colbert























Leonardo Almeida Filho é professor universitário, escritor, ensaísta e mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília. Publicou sua tese, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito, pela Editora da UnB, em 2008, e também, O livro de Loraine (romance, 1998) e Logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008). Possui contos e poesias nas coletâneas Antologia do Conto Brasiliense (2004), Todas as gerações (2007) e Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); e Poemas para Brasília (2004). Em 2010, pela Editora Hinterlândia, publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem; e em 2014, pela editora E-galaxia, o volume de contos Nebulosa fauna & outras histórias perversas. Em 2018, lançou o volume de poesias Babelical, e em 2019 o romance Nessa boca que te beija, ambos pela Editora Patuá. Email: leo.almeidafilho@gmail.com

(Dados retirados do blog Ruído Manifesto)


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