domingo, 22 de abril de 2012

Alexandre Magno da Silva

As coisas se mantêm vivas até que os últimos olhos que as puderam ver se fecham, para sempre – J.L. Borges

Da sala de TV ouviu apitando a fumegante chaleira. Arrastava os pés revelando o cansaço. Logo o seu chá estaria pronto e aguardava ansiosamente por uma noite bem dormida, sem sons invasivos dos jovens vizinhos, dos casais que chegam em casa para a mesmíssima discussão – porque eles voltam sempre? – os barulhos dos calçados no andar de cima e os jovens amantes no corredor às gargalhadas. Sr. Albuquerque sofria por ouvir demais, e por isso não havia paz no mundo que lhe reservasse o digno e merecido repouso. Um beberico ou dois no seu chazinho e os lençóis puxados até os ombros ossudos, estreitos como se fossem feitos para caber numa cama de criança. Sr. Albuquerque realmente parecia estar encolhendo nos últimos anos, por fora, por dentro.

Ah, suspiro! Sentir o cansaço do corpo no alivio do velho colchão de molas, desligar o abajur e sorrir para a paz que nasce no fundo de um dia vencido. Dias difíceis aqueles, coisas da saúde. Não adiantava fingir para si próprio, logo chegaria a sua vez e tudo o que ele mais queria era descansar um pouco, de verdade, uma noite bem dormida, naturalmente, antes de chegar a sua vez de se despedir em definitivo.

Acontece que dormia pouco. Ouvia ruídos o tempo todo e cada um deles invadia seus sonhos, e no momento certo, eles sempre o despertavam. Era exaustivo. Sonhara com o som de ratos correndo com seus olhinhos vermelhos pelo forro do quarto e, menos que repentinamente, lá estavam eles roendo os pés da sua cama, seus farrapos de cobertor, suas meias. “Fora!” Despertava nauseabundo, odiava os ratos. Eles realmente não poderiam estar ali, mas seus ouvidos, que ouviam longe, tornavam tudo real, como se o mundo realmente pudesse invadir o seu quarto de pensão usando as chaves que ele guardava cuidadosamente em seus bolsos. Sonhou que um casal de adolescentes copulava feito animais pequeninos e furtivos defronte à sua janela e acabou com ambos o jogando da cama, “fora, fora, fora!”. O que era sonho ou realidade ou imaginação, ele já não sabia mais. Ouvia tudo sem querer fazer parte. E o repouso não vinha.

Um dia, cansado demais para lutar, Sr. Albuquerque sentou-se na cama e pensou, num misto de contrariado e em paz consigo, “está bem”. Decidiu celebrar a derrota. Comprou uma garrafa da sua bebida favorita, foi para a frente do prédio, e se sentou na escadaria, observando a noite que ia se servindo das dores e do tédio de todo o tipo de gente. Não custou muito para que os vizinhos reparassem no estranho comportamento daquele velhinho dado a manter as portas devidamente fechadas. Sem se dar conta, Sr. Albuquerque cantava. Primeiro daquele modo constrangido, quando cantamos apenas para nós mesmos. Depois, a plenos pulmões, com os braços erguidos, feliz como nunca houvera sido:

“Ao longe, ao longe/ carrega o corpo que fica/ não vê que em noite tão bonita/ já é tempo, é tempo!/ de repouso para a vida?”

Cantava tão emocionado que se serviu do coração como se realmente não precisasse dele. Caiu sentado, apoiado sobre a escadaria. Morto como o silêncio que se seguiu. A imaginação e a realidade encontraram no Sr. Albuquerque um recanto comum para uma última partida. Os ratos, sem chiar, roíam os quartos e corredores em respeito. O prédio inteirinho sumiu no meio da noite. Se houve algum som audível em toda a sua cercania, era o som do vento nos cabelos do Sr. Albuquerque que, embriagado de exaustão, ia embora a passos largos, e sorria, e sorria, pela vida que ficava, e pela outra que antevia, no mais puro e cristalino silêncio.

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