sábado, 21 de abril de 2012

Marguerite Yourcenar

EXCERTO DE "FOGOS"
O amor é um castigo. Somos punidos por não termos podido permanecer sós. 
É preciso amar um ser para correr o risco de sofrer por ele. É preciso amar-te muito para me tornar capaz de sofrer por ti.

Não posso impedir-me de ver no meu amor uma forma requintada de deboche, um estratagema para passar o tempo, para esquecer o Tempo. O prazer realiza em pleno céu uma descida forçada, em meio ao ruído de um motor enlouquecido pelos últimos sobressaltos do coração. Planando, a prece se eleva ao céu e a alma ai conduz o corpo na assunção do amor. Para que uma assunção se torne possível, é necessário um Deus. Tens exatamente a beleza, a cegueira e as exigências necessárias para representares o Todo-Poderoso. Fiz de ti, na falta de algo melhor, a chave de abóbada do meu universo.

Os teus cabelos, as tuas mãos, o teu sorriso lembram vagamente alguém que eu adoro. Quem? Tu mesma.

Duas horas da manhã. Nos depósitos de lixo, os ratos roem os restos do dia morto. A cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos noctâmbulos. Onde estás? Em que leito? Em que sonho? Se eu te encontrasse, certamente passarias sem me ver porque não nos vemos em sonhos. Não tenho fome: essa noite não consigo digerir minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear tua lembrança. Não sinto sono: sequer sinto o apetite da morte. Sentada sobre um banco, embrutecida apesar de mim mesma pela aproximação da manhã, deixo de lembrar-me de que tento esquecer-te. Fecho os olhos ... Os ladrões não desejam senão os nossos anéis, os amantes senão a nossa carne, os pregadores senão a nossa alma, os assassinos senão a nossa vida. Podem tomar a minha vida. Desafioos: nada mudarão nela. Curvo a cabeça para sentir abaixo de mim a agitação das folhas... Encontro-me num bosque, num campo ... É o instante em que o Tempo se disfarça em varredor, e Deus, talvez, em trapeiro. Ele, o avaro, ele, o teimoso, ele que não permite que uma pérola se perca entre o amontoado de conchas vazias à porta das tavernas. Nosso pai que estais no céu ... Acaso verei um dia vir sentar-se ao meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés cobertos de lama por ter atravessado Deus sabe que rio para encontrar-me? Ele se sentaria pesadamente no banco, tendo em sua mão fechada um presente muito valioso que seria suficiente para mudar tudo. Abriria os dedos devagar, um após o outro, prudentemente, porque o objeto poderia desaparecer. .. Que traria ele? Um pássaro, um germe, uma faca, uma chave para abrir a caixa que abriga meu coração?

Espírito? Espírito na dor? Há, de fato, sal nas lágrimas.

Medo de nada? Medo de ti.


[In: Fogos, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1983, pp. 148-150]


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