terça-feira, 26 de junho de 2012

Carlos Drummond de Andrade

ADEUS AO COLÉGIO 


ADEUS COLÉGIO, adeus vida
vivida sob inspeção, 
dois anos jogados fora 
ou dentro de um caldeirão
em que se fritam destinos
e se derrete a ilusão. 
Já preparo minha trouxa 
e durmo na solidão.
Amanhã cedo retiro-me,
pego o trem da Leopoldina, 
vou ser de novo mineiro. 
Da angústia a lâmina fina 
começa a me cutucar. 
É uma angústia menina,
ganhará forma de cruz
ou imagem serpentina.
Sei lá se sou inocente
ou sinistro criminoso. 
Se rogo perdão a Deus 
ou peço abrigo ao Tinhoso. 
Que será do meu futuro 
se o vejo tão amargoso? 
Sou um ser estilhaçado 
que faz do medo o seu gozo. 

II 

Nada mais insuportável do que essa viagem de trem. 
Se me atirassem no vagão de gado a caminho do matadouro
talvez eu me soubesse menos infeliz. 
Seria o fim, e há no fim uma gota de delícia,
um himalaia de silêncio para sempre. 
Não quero ouvir falar de mim. 
Não quero eu mesmo estar em mim. 
Quero ser o barulho das ferragens me abafando,
quero evaporar-me na fumaça, 
quero o não querer, quero o não-quero.
Como custa a chegar o chão de Minas.
Será que se mudou ou se perdeu? 
Olho para um lado. Para outro. 
O esvoaçar de viuvez 
no todo preto da senhora à esquerda, 
no preto dos vestidos, das meias e sapatos
de duas mocinhas de olhos baixos, 
não tão baixos assim. Essa os levanta 
cruza com os meus, detêm-se. O luto evola-se.
É um dealbar no trem tristonho, 
sonata em miosótis, aragem na avenca 
súbito surginte 
em jarra cristalina. 
Cuidados meus, desgraças minhas, 
eia, fugi para bem longe. 
O idílio dos olhos vos expulsa, 
como expulso fui eu, ainda há pouco, 
de outra forma - que forma? nem me lembra. 
Vem do céu a menina e a ele me leva, 
leves, levíssimos os dois. 
Palavra não trocamos: impossível, 
mãe presente. 
E para que trocá-las, se nem sei 
se vigoram palavras nesta esfera
diáfana, a que me vejo transportado?
Nem ideia de amor acode à mente, 
que o melhor de amar não é dizer-se, 
nem mesmo sentir-se: é nos abrir 
a mais sublime porta subterrânea.
Estou iluminado 
por dentro, no passado,
no futuro mais longínquo 
e meu presente é não estar no tempo
e alçar-me de toda contingência. 
De banco de palhinha a banco de palhinha,
entre fagulhas de carvão 
fosforescentes na vidraça, 
entre conversas e pigarros, 
diante do chefe-de-trem que picota bilhetes,
torna-se a vida bem não desgastável 
se a menina sorri 
quase sem perceber que está sorrindo.
Nem a irmã reparou. Mas eu colhi 
a laranja de flores deste instante 
que vou mastigando como um deus. 
Foi preciso sofrer por merecê-la? 
Agora que a alcancei, não deixo mais
este comboio, este sol. .. 

III 

Por que foi que inventaram 
a estação de Entre Rios? 
E por que se exige aqui baldeação
aos que precisam de Minas? 
Já não preciso mais. Vou neste trem
até o infinito dos seus olhos. 
Advertem-me glacialmente: 
"Tome o trem da Central e vá com Deus". 
Como irei, se vou sozinho e sem mim mesmo
se nunca mais, se nunca mais na vida 
verei essa menina?
Expulso de sua vista
volto a saber-me expulso do colégio
e o Brasil é dor em mim por toda parte.

In POESIA E PROSA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1992, 681-684




Nenhum comentário:

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...