sexta-feira, 29 de junho de 2012

Clarice Lispector

EXCERTO DE "ÁGUA VIVA"

Na verdade ainda não estou vendo bem o fio da meada do que estou te escrevendo. Acho que nunca verei - mas admito o escuro onde fulgem os dois olhos da pantera macia. A escuridão é o meu caldo de cultura. A escuridão feérica. Vou te falando e me arriscando à desconexão: sou subterraneamente inatingível pelo meu conhecimento.

Escrevo-te porque não me entendo.

Mas vou me seguindo. Elástica. É um tal mistério essa floresta onde sobrevivo para ser. Mas agora acho que vai mesmo. Isto é: vou entrar. Quero dizer: no mistério. Eu mesma misteriosa e dentro do âmago em que me movo nadando, protozoário. Um dia eu  disse infantilmente: eu posso tudo. Era a antevisão de poder um dia me largar e cair num abandono de qualquer lei. Elástica. A profunda alegria: o êxtase secreto. Sei como inventar um pensamento. Sinto o alvoroço da novidade. Mas bem sei que o que escrevo é apenas um tom.

Nesse âmago tenho a estranha impressão de que não pertenço ao gênero humano.

Há muita coisa a dizer que não sei como dizer.

Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há pala" vras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.

E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre cerda tensa. Caminho até o limite do meu sonho grande. Vejo a fúria dos impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. Não gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço.

Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. Para onde vou? e a resposta é: vou.

Quando eu morrer então nunca terei nascido e vi vido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia.

Agora é um instante. Já é outro agora.

E outro. Meu esforço: trazer agora o futuro para já. Movo-me dentro de meus instintos fundos que se cumprem às cegas. Sinto então que estou nas proximidades de fontes, lagoas e cachoeiras, todas de águas abundantes. E eu livre. .

Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo "águas abundantes" estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silêncio.

Sou-me.

In: ÁGUA VIVA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980, pp. 28-30.




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