segunda-feira, 18 de junho de 2012

Marguerite Duras

EXCERTO  DE  "CADERNOS DA GUERRA E OUTROS TEXTOS"
Entre todas as cidades eu gosto daquelas, daquelas que se parecem com Sarzana, Marina di Carrara, Aen e certas cidades corsas, Bonifácio, Pontevecchio, Toulon também, as cidades sem árvores (Florença também, a coisa mais chocante é que não há uma única árvore em Florença) nas praças ardentes que, do meiodia às três horas, se esvaziam, se fecham, ficam completamente mortas. Geralmente essas cidades são sujas, cheiram a cebola, excremento de cavalo e, como estão à beira-mar, a peixe. As casas são velhas, mal construídas, pobres, populosas, as entradas e os corredores cheiram a mofo, não há jardins, na praça uma fonte da qual sai um filetezinho de água. Os frontispícios são raros, encaixam-se em janelas, há meias, embalagens, cartões postais, macacões de trabalho. Tudo desmorona nessas cidades, as calçadas desmoronaram, o varredor público dorme da uma às três, só há um varredor para a cidade toda, pois a municipalidade é pobre, e nas sarjetas acumula-se lixo. Essas cidades são varridas pelo vento do mar que se levanta lá pelas três da tarde e então, nas praças vazias, a poeira se levanta em nuvens, a poeira dessas cidades é fina, salgada, cheira a urina, ela está por toda parte, os buxos do jardim do padre (as únicas plantas da cidade) ficam cobertos por ela, e as crianças têm os pés empoados com ela. 

Quando chove no final de agosto essas cidades exalam, como nenhuma outra, a poeira de cinco meses de verão, de podridões de toda sorte, incham e exalam seus odores de carnes molhadas. Essas cidades não são feitas para agradar, são mercados onde vêm se abastecer os moradores dos campos vizinhos. Em seus arredores perambulam mascates, cinemas ambulantes. Essas cidades são para mim as mais eróticas do mundo. Cidades de sombra, de sol. A sombra contrastante. A sombra é erótica. 

É com essas cidades, dizia eu a mim mesma, que sonha Gaston, o varredor. 

[In Cadernos da guerra e outros textos, são Paulo: Estação Liberdade, 2006, p. pp. 243-244]




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