segunda-feira, 16 de julho de 2012

Marguerite Yourcenar

EXCERTO  DE "FOGOS"
Poderias mergulhar, como um só bloco, no nada para onde vão os mortos: eu me consolaria se me legasses tuas mãos. Tuas mãos. Apenas tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as mãos dos deuses de mármore transformados no pó e na cal das suas próprias sepulturas. Elas sobreviveriam aos teus atos e aos corpos miseráveis que acariciaram um dia. Entre as coisas e ti, elas já não serviriam de intermediárias: seriam transmudadas em coisas. Tornar-se-iam inocentes porque não estarias presente para convertê-las em cúmplices. Tristes como cães sem dono, desnorteadas como arcanjos a quem nenhum deus dá ordens, tuas mãos inúteis repousariam sobre os joelhos das trevas. Tuas mãos abertas, incapazes de proporcionar ou de receber qualquer alegria, me deixariam cair como uma boneca partida. Beijo, na altura do pulso, essas mãos indiferentes que tua vontade já não afasta das minhas. Acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora brotava ininterruptamente do solo do teu coração como o jato de uma fonte. Com pequenos soluços satisfeitos, tal uma criança, descanso minha cabeça entre essas palmas cheias de estrelas, cruzes e precipícios que um dia compuseram o meu destino.

In Fogos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, pp. 67-68, trad. Martha Calderar

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