domingo, 22 de julho de 2012

Marguerite Yourcenar

EXCERTO DE "FOGOS"

Lena ou o segredo
Lena era a concubina de Aristogiton e bem menos sua amante que sua serva. Eles habitavam numa casinha perto da capela de São Sotero. Ela cultivava tenras abobrinhas e abundantes berinjelas no pequeno jardim. Salgava as anchovas, cortava em quartos a polpa vermelha das melancias, descia para lavar a roupa no leito seco do Ilisso e zelava para que o seu amo usasse um lenço para proteger-se dos resfriados após os exercícios no Estádio. Como paga por tantos cuidados, ele se deixava amar. Saíam juntos e iam ouvir nos pequenos cafés as canções populares, ardentes e lamentosas como um sol  obscuro. Lena se sentia orgulhosa ao ver-lhe a fotografia na primeira página dos jornais esportivos. Ele se inscreveu no concurso de boxe de Olimpia e consentiu que ela tomasse parte na viagem. Ela suportou, sem se queixar, a poeira dos caminhos, a andadura fatigante das mulas e os albergues imundos onde a água era vendida mais caro que o melhor vinho das ilhas. Na estrada, o barulho dos carros era tão contínuo que não se podia ouvir nem mesmo o canto das cigarras. Certo dia, ao contornar uma colina por volta do meio-dia, ela descobriu aos seus pés o vale de Olímpia, cavado como a palma da mão de um deus que carregasse a estátua da Vitória. Um vapor quente flutuava sobre os altares, as cozinhas e as barracas da feira cujas jóias baratas Lena cobiçava com o olhar. Na multidão, para não se perder do amo, ela prendeu a ponta do seu manto entre os dentes. Havia ungido, ornado com fitas e lambuzado com beijos os ídolos bastante condescendentes para não repelirem os avanços de uma criada. Em intenção do sucesso do amo, recitou tudo que sabia de orações e despejou contra os rivais todas as maldições que conhecia. Separada dele durante as longas abstinências impostas aos atletas, dormiu sozinha sob a tenda, no reduto destinado às mulheres, fora do recinto reservado aos competidores. Repeliu as mãos que se estendiam no escuro, indiferente até mesmo aos cartuchos de sementes de girassol que lhe ofereciam suas vizinhas. A imaginação do boxeador enchia-se de torsos brilhantes de óleo e de cabeças raspadas nas quais as mãos não têm onde agarrar-se. Lena tinha a impressão de que Aristogiton a abandonava por seus adversários. Na noite dos jogos, ele surgiu carregado em triunfo através dos corredores do Estádio, arquejante como após o amor, presa dos fotógrafos e dos repórteres. Nesse momento ela teve a impressão de que ele a traía com a Glória. Sua vida de triunfador passava-se em comemorações com as pessoas da sociedade. Ela o viu sair do banquete ritual em companhia de um jovem da nobreza ateniense, ébrio de uma embriaguez que ela desejava atribuir ao álcool porque mais facilmente nos recuperamos do vinho do que da felicidade. Ele entrou em Atenas no carro de Harmódio. Abandonou Lena aos cuidados de uma de suas vizinhas e desapareceu numa nuvem de pó, arrebatado às carícias como um morto ou como um deus. A última imagem que ela guardou dele foi de uma echarpe flutuando sobre uma nuca morena. Como uma cadela que segue de longe seu dono que partiu sem ela, Lena retomou, no sentido inverso, a estrada montanhosa, em companhia das mulheres que se apressavam nos pontos mais desertos, temendo encontrar os sátiros. Em cada estalagem de aldeia em que entrava para comprar um pouco de sombra e um café acompanhado de um copo d'água, encontrava o proprietário ainda ocupado em contar as moedas de ouro caídas negligentemente dos bolsos dos dois homens. Por toda parte, eles haviam ocupado os melhores quartos, bebido os melhores vinhos e obrigado os cantores a cantarem até o romper do dia. O orgulho de Lena, que era ainda amor, curava as feridas do seu amor que era ainda orgulho. Pouco a pouco, o jovem deus arrebatador deixava de ser apenas um rosto para tornar-se para ela um nome, uma história, um breve passado. O garagista de Patras contou-lhe que ele se chamava Harmódio; o alquilador de Pyrgos falava sobre os seus cavalos de corrida; o barqueiro do Estige, cujas funções o obrigavam a frequentar os mortos, sabia que ele era órfão e que seu pai acabava de chegar à outra margem dos dias. Os ladrões de estradas não ignoravam que o tirano de Atenas o havia cumulado de riquezas e que as cortesãs de Corinto juravam que ele era belo. Todos, até mesmo os mendigos e os bobos da aldeia, sabiam que ele conduzia em seu carro de corrida o campeão de boxe dos Jogos Olímpicos. Aquele rapaz radiante não era senão a taça, o vaso ornado de fitas, a figura de longos cabelos da Vitória. Em Mêgara, o funcionário da alfândega municipal informou a Lena que Harmódio, tendo-se recusado a dar passagem ao carro do chefe do Estado, recebeu violenta reprovação de Hiparco por sua ingratidão e por suas relações plebéias. Milicianos apossaram-se à força do carro de fogo que ele não lhe havia dado, disse, para ser usado em companhia de um boxeador. Nos arredores de Atenas, Lena tremia ao som das aclamações sediciosas nas quais o nome de seu amo chegavalhe até os ouvidos pronunciado por dez mil pares de lábios. A juventude havia organizado desfiles com archotes em honra do vencedor, aos quais Hiparco se recusou a assistir. Os pinheiros arrancados com suas raizes choravam copiosamente sua resina sacrificada. Na pequena casa do bairro de  São Sotero, os bailarinos, batendo descompassadamente os saltos dos sapatos sobre as lajes do pátio, projetavam sobre a muralha um afresco móvel e nu. Para não perturbar ninguém, Lena introduziu-se silenciosamente pela entrada da cozinha. Os potes e caçarolas já não lhe falavam na antiga linguagem familiar. Mãos desajeitadas haviam preparado uma refeição. Ela se feriu no dedo juntando os cacos de um copo quebrado. Experimentou em vão afagar, com o auxílio de ossos e de carinhos, o lebréu de Harmódio deitado sob o guarda-comida. Havia esperado que o seu amo lhe trouxesse o menu dos jantares da alta sociedade aos quais comparecia, mas Aristogiton sequer notava os seus sorrisos. Para desembaraçar-se dela, mandou-a trabalhar na vindima de sua pequena fazenda de Decélia. Ela pressupõe um casamento entre seu amo e a irmã de Harmódio. Pensa, com horror, em uma esposa e, com angústia, na eventualidade dos filhos. Viu, na sombra projetada sobre o seu caminho, o belo Eros cercado de tochas. A ausência do casamento não tranquiliza senão medianamente essa inocente que se ilude sobre o tipo de perigo: Harmódio fez a desgraça entrar naquela casa como uma amante disfarçada. Lena sente-se preterida por essa mulher intangível. Certa noite, um homem de aspecto envelhecido, cujo rosto ela não reconhece, apesar de multiplicado ao infinito nos selos e nas moedas com a efígie de Hiparco, bate à porta de serviço e pede timidamente o pedaço de pão de uma verdade. Aristogiton, que entra por acaso, a encontra atarefada ao lado do mendigo de aparência suspeita. Ele desconfia demais dela para censurá-la: expulsa-a do quarto que se enche subitamente de gritos. Alguns dias mais tarde, Harmódio descobre seu amigo vítima de uma emboscada, junto à fonte de Clepsidra: grita por Lena para ajudá-lo a transportar o corpo do boxeador, tatuado a golpes de faca, para o único sofá da casa. Suas mãos escurecidas pelo iodo se encontram sobre o peito do ferido. Lena vê desenhar-se sobre a fronte curvada de Harmódio a rugazinha inquieta de Apolo, o encantador das feridas. Ela estende suas grandes mãos agitadas em direção ao jovem, suplicando-lhe que salve seu amo. Já não se admira de ouvi-lo censurar-se por cada ferimento como se fosse o único responsável pelos mesmos. Parece-lhe natural que um deus seja ao mesmo tempo assassino e salvador. Os passos de um policial em trajes civis, indo e vindo ao longo da rua deserta, faz estremecer o ferido deitado sobre o sofá. Só Harmódio continua a aventurar-se pela cidade como se nenhuma faca fosse capaz de abrir uma brecha em sua carne. Essa indiferença ao perigo confirma Lena na convicção de que ele é deus. Eles temem sua língua a ponto de procurar fazê-la tomar a agressão da véspera por uma rixa de homens embriagados. Temem sem dúvida que ela informe ao açougueiro ou ao merceeiro da esquina que ambos têm uma boa oportunidade para se vingarem. Lena percebe, horrorizada, que eles fazem os cães experimentarem os ensopados que ela lhes prepara, como se lhe atribuis sem boas razões para odiá-los. A fim de que os esqueça, eles partem com alguns amigos para acampar junto ao Parnato, à maneira cretense. Ocultam-lhe a posição da caverna onde dormem, mas a encarregam de lhes fornecer os alimentos que deve depositar sob uma pedra, como se se tratasse de mortos errando pelos confins do mundo. Como uma oferenda, ela leva para Aristogiton vinho negro e quartos de carne sangrenta, sem conseguir fazer falar o espectro exangue que não a beija mais. Aquele sonâmbulo do crime já não é mais que um morto caminhando em direção à sua sepultura, como os cadáveres dos judeus vão em peregrinação a Josafá. Toca timidamente em seus joelhos e em seus pés nus para assegurar-se de que não estão gelados. Julga ver na mão de Harmódio a varinha do feiticeiro Hermes, o condutor de almas. Seu regresso a Atenas se passa entre os cães do medo e os lobos da vingança. Figuras grotescas de pequenos fidalgos sem fortuna, advogados sem causa, soldados sem futuro se introduzem no quarto do amo como sombras projetadas pela presença de um deus. Desde que Harmódio obrigou-se, por prudência, a não mais dormir em sua casa, Lena, relegada à mansarda, já não pode velar cada noite o amo como se vela um enfermo, nem abraçá-lo cada noite como se abraça uma criança. Escondida no terraço, observa o abrir e fechar ininterrupto da porta da casa contaminada pela insônia. Assiste, sem nada compreender, às idas e vindas que servem de lançadeira para tecer a vingança. Às vésperas de uma festa esportiva, empregam-na para costurar cruzes aladas sobre vestidos de lã escura. Lâmpadas brilham nessa noite sob todos os tetos de Atenas: as donzelas nobres preparam seus vestidos de comungantes para a procissão do dia seguinte. No fundo do santuário, ajeitam-se os anéis dos cabelos ruivos da Virgem. Um milhão de grãos de incenso ardem sob as narinas de Atenas. Lena mantém no seu colo a pequena lrini que passou a viver na casa porque Harmódio teme que Hiparco vingue-se dele sequestrando sua jovem irmã. Sente-se tomada de piedade por essa mocinha que em outros dias havia receado ver entrar na casa sob a grinalda de esposa. Comove-se ao compreender que as esperanças de ambas haviam sido traídas. Passa a noite escolhendo as rosas vermelhas que a menina deve atirar à passagem da Virgem Puríssima. Harmódio mergulha as mãos impacientes ne interior da cesta, fazendo-as parecer molhadas em sangue. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons de· pérola, Lena toma pela mão a pequena Irini, que estremece sob o nacarado dos seus véus. Sobe com a criança muito compenetrada as rampas do Propileu. Dez mil chamas de círios brilham fracamente à claridade da madrugada como outros tantos fogos-fátuos que não tivessem tido tempo de regressar a seus túmulos. Hiparco, ainda bêbado de pesadelos, pisca os olhos ante tal brancura. Examina distraidamente a cândida fila azul das crianças de Atenas. Subitamente, percebe a semelhança detestada sobre o rosto impreciso da pequena lrini. Transtornado, sacode freneticamente o braço da jovem ladra que ousa apropriar-se daqueles olhos abomináveis e ordena que afastem para longe de sua vista a irmã do miserável que envenena seus sonhos. A criança cai de joelhos e o cesto tomba, espalhando seu conteúdo vermelho. Lágrimas tornam confusa a semelhança abominável e divina. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons de ouro como aquele coração inalterável, a boa Lena leva para casa a criança despenteada e privada de sua corbelha. Harmódio estoura de alegria ante a desejada humilhação. Lena, ajoelhada sobre o pavimento do pátio, balançando a cabeça como uma carpideira de funerais, sente pousar sobre sua fronte a mão do jovem impiedoso que se assemelha a Nêmesis. Os insultos do tirano, suas ameaças que repete sem tentar compreender, assumem em sua voz monocórdia a horrível monotonia dos veredictos sem apelo e dos fatos consumados. Cada ultraje imprime no rosto de Harmódio uma nova ruga ou um sorriso odioso. Diante da presença desse deus que nem mesmo quer saber o seu nome, ela se apaga, desinteressando-se até de existir, de ser útil e talvez mesmo de fazer sofrer. Auxilia Harmódio a mutilar os belos loureiros do pátio, como se o primeiro dever consistisse em suprimir toda sombra. Sai do jardim ao lado dos dois homens, ocultando os cutelos da cozinha dentro dos ramos de Páscoa. Fecha a porta para não perturbar a sesta de Irini. Fecha também a gaiola dos pombos, a caixa de papelão onde as cigarras se alimentam e, nesse instante, todo o passado torna-se profundo como um sonho. A multidão endomingada a separa dos seus amos. Já não os distingue. Empenha-se em segui-los ao longo dos canteiros do Pártenon, tropeçando no amontoado dos blocos mal desbastados que fazem o templo da Virgem assemelhar-se às suas ruínas futuras. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons vermelhos, ela consegue vislumbrar os dois amigos que desaparecem entre a engrenagem das colunas como no fundo de uma máquina de triturar o coração humano para dele extrair um deus. Ouvem-se gritos. Bombas explodem. O irmão mais velho de Hiparco, estripado sobre o altar coberto de sangue e de brasa, parece oferecer suas entranhas ao exame dos padres. Hiparco, ferido de morte, continua a bradar suas ordens, enquanto se apóia a uma coluna para não cair vivo. As portas do Propileu se fecham para cortar aos rebeldes a única saída que não dá para o vazio. Os conjurados, apanhados nessa armadilha de mármore e de céu, correm de um lado para outro e acabam por cair sobre um amontoado de deuses. Arístogiton, ferido na perna, é capturado pelos batedores ao fundo das grutas de Pã.  O corpo linchado de Harmódio é esquartejado pela multidão como o de Baco durante as missas sangrentas. Adversários, ou fiéis talvez, passam entre si a espantosa hóstia. Lena ajoelha-se e recolhe no seu avental os anéis de cabelos de Harmódio, como se esse serviço fosse o mais urgente que ela pudesse prestar a seu amo. Agentes da polícia se lançam sobre ela e atam suas mãos, que perdem instantaneamente o aspecto gasto de utensílio doméstico para se transformarem em mãos de vitima, em falanges de mártir. Ela sobe no carro celular como os mortos sobem nas barcas. Atravessa uma Atenas estagnada e gelada pelo medo. Os rostos se ocultam por trás dos postigos fechados pelo receio de serem obrigados a julgar. Ela desce diante de uma casa cujo aspecto de hospital e de prisão a identifica como o palácio do chefe do Estado. Na entrada dos carros, cruza com Aristogiton oscilando sobre as pernas feridas. Deixa desfilar o pelotão de execução sem voltar para o amo os olhos que já se assemelham às pupilas vitrificadas dos mortos. O crepitar dos tiros no interior do pátio vizinho não soa para seus ouvidos senão como uma salva de honra sobre o túmulo de Harmódio. Empurram-na para dentro de uma sala caiada de branco, onde os torturados assumem imediatamente o aspecto de animais agonizantes e os carrascos, de vivisseccionistas. Hiparco, estendido sobre uma padiola, volta para ela a cabeça enfaixada e segura tateante aquelas mãos de mulher crispadas sobre a única verdade de que ele ainda tem fome. Fala-lhe tão baixo e de tão perto que o interrogatório tem o ar de uma confidência amorosa. Exige nomes e confissões. O que viu? Quais eram seus cúmplices? O mais velho dos dois teria servido de iniciador para o mais jovem nessa corrida para a morte? O boxeador não era senão um soco na mão de Harmódio? Teria sido o medo que levara o jovem a se desembaraçar de Hiparco? Teria sabido que seu superior já não o detestava e que O perdoara? Falava muitas vezes sobre ele? Sentia-se triste? Uma intimidade ·desesperada estabeleceu-se entre esse homem e essa mulher possuídos pelo mesmo deus, morrendo do mesmo mal, cujos olhares extintos voltavam-se em direção dos dois ausentes. Lena, submetida ao interrogatório, cerra os dentes e contrai os lábios. Seus amos ficavam calados quando ela servia os pratos. Ela havia permanecido na soleira das suas vidas como uma cadela junto às portas. Essa mulher vazia de lembranças esforça-se, por orgulho, em fazer crer que sabe tudo, que seus amos lhe abriram o coração como a uma confidente com quem se pode contar e de quem depende a revelação do passado. Os carrascos estendem-na sobre um cavalete para arrancá-la do seu silêncio. Ameaçam aquela flama com o suplício da água; falam em infligir o suplício do fogo àquela fonte. Ela teme a tortura que não arrancará de si senão a humilhante confissão de que foi apenas uma criada, jamais uma cúmplice. Uma golfada de sangue jorra de sua boca como durante uma crise de hemoptise. Lena arrancou a própria língua para não revelar os segredos que ela desconhecia.

In Fogos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, pp. 85-99, trad. Martha Calderaro

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