Tenho sido injusto para com a Noite. Amo a Noite e vivo a
difamá-la, chegando mesmo ao crime de tomar narcótico para combater a insônia —
esse meu único bem. A Noite é a túnica que me assenta como uma luva, como
sudário a um cadáver, ou — já que estou mesmo no terreno das comparações — como
óculos escuros num cego de nascença, em pleno meio-dia.
Só não amo, na Noite, as baratas
e os escorpiões, estes felizmente mais raros de encontrar do que os fantasmas
ou os assassinos em- buçados nas esquinas sem luz, a desoras. As batatas,
temo-as como aos seres fantásticos criados pela imaginação de Jerônimo Bosch, e
preferiria ter que entrar na jaula dos leões a ter por um instante na mão um
desses habitantes dos esgotos e das sarjetas, de antenas vibráteis e patas de
caranguejo. Vou mesmo ao extremo de preferir uma sopa de escorpiões vivos ao
simples contato de uma barata morta e já em parte devorada pelas formigas, de
patas para o ar como uma prostituta. O meu inferno será por certo todo coalhado
de baratas aos milhares e aos milhões, todas vivas e ágeis dentro das trevas
eternas e úmidas — a menos que falte ao meu punidor a imaginação necessária
para punir-me até a loucura, ou não tenha ele maldade bastante para impor um
tal castigo à minha humana inocência.
Mas a Noite, excluídas as baratas
e a ameaça dos escorpiões, é a minha musa e o meu túmulo bem-amado, aquele a
que aspiro com todas as forças da minha alma, como deve aspirar ao seu todo ser lúcido e tocado de inviolável pureza. E aqui lhe rendo esta
homenagem tardia mas veemente, no pleno silêncio deste quarto frio e povoado
de trevas, tendo por quadro-negro esta parede onde a custo faço deslizar a
ponta do meu lápis, já que a lua hoje nao veio da Ásia e não consigo sequer
enxergar o meu triste corpo ajoelhado na cama.
...Non dormit diabolus.
( da obra A Lua vem da Ásia)
In: Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., pp. 89-90
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