sábado, 4 de agosto de 2012

Murilo Mendes

CANTIGA ESCURA
Falam-me oboés
De vida eterna
—   Esta vida mesma
Com amor intenso.

Ó céu de pedra!
?Quem até hoje foi ouvido
Por ti, céu feroz.

Murmúrios d’água:
Sonhos e queixas
Levareis até o fim
Do mundo.

Buquê da noite,
Ninguém te respira
Com inocência.

Nunca sabemos direito
Em que instante principia
Nossa vida verdadeira.

O pássaro profeta cantou
Dos trabalhos e da morte
Do homem:
Só lhe ouviram a melodia.

Vigilante das esferas,
Não venhas no vento e nuvem.
Surge, hóspede imprevisto,
Nesta alma frondosa.

DESEJO
Ao sopro da transfiguração noturna
Distingo os fantasmas de homens
Em busca da liberdade perdida:

Quisera possuir cem milhões de bocas,
Quisera possuir cem milhões de braços
Para gritar por todos eles
E de repente deter a roda descomunal
Que tritura corpos e almas
Com direito ao orvalho da manhã,
À presença do amor, à música dos pássaros,
A estas singelas flores, a este pão.

MARAN ATHA!
Foi um adolescente.
Durante anos, à luz da esfera,
O estudo a fome das coisas.
A ciência do bem e do mal
Fora prevista na árvore do sangue
—   Caridade dos sentidos.

Um dia de febre e piano
Depôs o capacete de plumas
Longe dos pássaros e dos frutos.
“E estas luzes que não iluminam
De lado algum!
E este amor que é mesmo pouco
Para a crueldade exigente.

De joelhos não rezo, de pé não matei.
Um único sopro extingue
As construções da espécie.
Por que achar o fio do Labirinto.
O importante é viver dentro dele”.

Terminava a adolescência.

Súbito,
—   Um dia de lucidez essencial e coros —
Ovo da ternura,
Partiu-se, um homem
Sai andando com o livro
Das origens e dos fins últimos
Na testa vidente, marcada
Com o sangue do Cordeiro:
"? Mundo Caim, teu irmão onde está,
Todos os povos, uni-vos num único homem
Para as núpcias do Cordeiro.
Comei o pão, bebei o vinho
Em torno da mesa redonda,
Todos têm direito à árvore da vida".

Vinde presto.

 [In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 416-418]






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