terça-feira, 4 de setembro de 2012
Carlos Pintado
JOY ESLAVA
My "place of clear water,"
the first hill in the world
where springs washed into
the shiny grass
and darkened cobbles
in the bed of the lane.
- Seamus Heaney
"Esta história não aconteceu, ou está para acontecer, o que dá no mesmo".
As palavras ecoaram, reverberando em sua cabeça como o som distante e impreciso das coisas que se ouvem nos sonhos. Mais tarde, procuraria algo sem saber o que estava procurando. O quarto parecia um deserto: uma pasta com papéis, alguns livros jogados ao chão e um espelho oval com manchas cinzentas a ofuscar a limpidez dos reflexos. A máquina de escrever indicava que algo ficara inacabado. O barulho de uma torneira pingando abafava a música que vinha de algum lugar. O homem piscou várias vezes. Suava. Foi à torneira e a fechou abruptamente.
A música de Clannad voltou a reinar no quarto.
Perguntou-se sobre o que fora fazer em Joy Eslava essa noite, e, na tentativa de encontrar uma resposta, lembrou-se da palavra Anahorish, que o remetia a um poema de Heaney e às noites imaginadas num pub de Dublin.
Nesse ponto eu entro na história.
A história que ia acontecer começou com minha ida a Joy Eslava; tento explicar-lhe algo desta conjunção casual, mas ele não entende; não quer entender. Tem a teimosia característica dos irlandeses. Eu tento explicar, filosofar, lembrar-lhe que num poema de Heaney existe essa palavra intraduzível. Repito Anahorish e suponho que nem ele saberá traduzi-la. Limitou-se a sorrir e eu não sorri. Vamos dançar, disse. Não foi uma pergunta. Eu não queria dançar, mas não pude negar o convite; suas mãos (talvez tenha sido apenas uma mão) se entrelaçam às minhas. Procuro a confirmação desse toque e não é possível: a penumbra imposta impede qualquer visão; as luzes explodem nas paredes, brilham com força na fátua escuridão do bar; seus dedos se enroscam nos meus, persistentes. Anos depois eu escreveria, numa história que nada tem a ver com esta, como um personagem lembra o outro:
"Com teus dedos de sombra me tocaste". Eu disse algo assim, mas mal se podia ouvir. Eu não conseguiria lembrar precisamente agora. Suas palavras me levaram de volta àquele momento.
Clannad dá lugar aos Cranberries. O teatro de teto circular ampara a noite. Viro a cabeça para olhar para algo no segundo andar e ele aproveita a oportunidade para beijar meu pescoço. Ia fazer-lhe uma pergunta, mas me calo. Prefiro sair e inventar a história que poderia ter acontecido: sobre os dois na Joy Eslava, dançando, bêbados; eu seria o turista de passagem por Madri e ele a sombra de um sonho, uma invenção minha, embora certamente negaria isso. Não quer para si o destino que lhe dou; diz que, se existe, não é a sombra de ninguém. Ele me pegaria nos ombros e eu teria que lembrar - em outra história que escreverei - que na realidade alguém me segurou pelos ombos naquele lugar. Em vão tentaria lembrar-me do momento em que trocamos os agasalhos. "Então terás algo para se lembrar de mim", disse, entregando-me o casaco de peles que me fez lembrar um urso morto. Nesse momento penso que é melhor fechar os olhos; pensar nessa palavra que nunca pude traduzir e que ele não entende. A única coisa que não existe é essa palavra, ele diria.
Se eu lhe desse mais atenção, talvez escreveria melhor esta história. Escreveria: o cheiro de seu cigarro me lembra outras ervas. Admitiria, depois, que gostava de vê-lo fumar no meio da multidão colorida. Fumaça de Dublin, penso. Como se lesse o pensamento, pergunta-me se conheço a Irlanda. Fitamo-nos. A fumaça é uma nuvem azul em meus olhos; eu a inalo; o perfume do tabaco é diferente. Fumaça de Dublin, eu escreveria anos mais tarde, em outra história que nada tem a ver com esta. Eu explico - tento explicar - que um dia escreveria esta história, mas ele não dá atenção. Jogamos o mesmo jogo de inventar-nos com palavras ditas no escuro, naquele mar de beijos e cotovelos e música alta.
Acordei com um fogo ardendo em meu peito. Tentara traduzir Heaney antes de dormir. Acordei pensando nessa tradução. Sussurrei Anahorish como se eu não estivesse sozinho no quarto e alguém, nas sombras do sono, pudesse me ouvir. Esperei alguns segundos, mas nada aconteceu. Esta história, devo-a a ignorância daquela palavra. Levantei-me convicto de que precisava ir a algum lugar. Pensei naquele que me lembrava uma "alegria eslava". Hesitei em ir ou ficar. Em algum lugar do meu pescoço eu tinha a marca, ainda úmida, de um beijo.
Ao entrar, vê-lo-ia dançando. Exatamente assim: sorrindo sem olhar ninguém, com um boné inclinado para baixo, quase tapando-lhe os olhos. Não sei se devo aproximar-me dele. Espanta-me sua pele pálida, como se há anos não tivesse visto sol. Minutos depois estávamos dançando. Fascina-me vê-lo envolvido pela luz dos holofotes. Contra a luz seu corpo parece frágil, a ponto de perder-se na sombra. Achego-me devagar. Como explicar-lhe que há algumas horas eu sonhara com ele? Pensaria que eu estava louco? Essa ideia me assusta. Não queria assustá-lo. Quem sabe o sonho se prolongara até aqui, até este momento em que, finalmente, estamos os dois: ele dançando, lentamente, sorrindo como um menino; eu, como uma estátua, observando a irrealidade da situação. Ainda estarei sonhando? pergunto-me, até que a voz de Dolores O´Riordan me acalma.
Estamos em Joy Eslava. Esta historia é verdadeira. Está acontecendo, digo a mim mesmo. A voz da cantora murmura em minha cabeça, zumbi, zumbi... Volto a pensar que tudo foi um sonho. É novembro: Joy Eslava está repleta de gente linda, de turistas, de madrilenos que, para escapar ao frio, vêm a lugares como este. As pessoas se movem ao ritmo de um transe inatingível. Sei que estou numa dança estranha e isso me incomoda. Vou ao bar e peço uma bebida que me tire a timidez. Teria preferido fumar um pouco. Há anos não ponho um cigarro em meus lábios. Escuto: and the violence causes silence, who are we mistaken? Tudo gira sem um centro fixo, sem gravidade, repleto de sombras que trocam beijos e abraços. Penso no garoto do sonho, que pouco a pouco vai desaparecendo de minha memória; o sonho deixa tudo muito irreal, como o poema de Heaney, que fala de um lugar tranquilo, cercado de águas quentes, onde se pode estender-se e falar. Repito a palavra, como para lembrar um conjuro - a esta altura duvido se o fato de repeti-la é de fato um conjuro ou um surto esquizofrênico - e nesse momento um casal se senta perto de mim; vejo-os de mãos dadas; ela me olha e me cumprimenta; ele faz o mesmo; ela para de me olhar e sussurra-lhe algo; o rapaz se demora fitando-me. Eu abaixo os olhos; as mãos se entrelaçam, persistentes. Anahorish, digo, ante o arranque estridente da música. Depois disso perco a noção de tudo. Há um fio muito tênue entre a realidade e o sonho, quando a garota deixa o rapaz e vai dançar sozinha. Meus olhos e os olhos do rapaz se encontram naquele mar de sombras e contornos enfumaçados. Ele quer dançar e eu digo sim, é claro. Suas mãos - ou talvez fosse apenas uma mão - se prendem às minhas mãos. Lembro-me de uma carícia ou da imagem de uma carícia. A pele arrepiada pelo tato. Olho para seu rosto, ele estava sorrindo. Em outra história, ao tentar descrevê-lo, eu escreveria: "Eu vou ser capaz de esquecer tudo sobre ele, exceto seu sorriso, suave, sensual, como o de uma menina. Mais tarde eu saberia que sua pele, ou melhor, a brancura de sua pele, era inesquecível.
Sorriu pela última vez e nos beijamos.
Quando ela voltou, ele e eu estávamos dançando. Suas mãos - muito mais suaves do que as dele - me abraçaram por trás. Senti sua língua brincalhona fincada em minha nuca. Neste momento confundo as duas histórias; há anos pintei um bosque cheio de caminhos que se cruzavam sob a neblina inglesa. Esta imagem retorna à minha memória. Pela manhã os dois serão somente uma sombra. Estarei, lamentavelmente, à margem dessa sombra. Recordarei de suas palavras: "amanhã pensarás que tudo isto foi um sonho". Vi que a menina já não estava. Surpreso, pareceu-me vê-la fugindo para algum lugar. Quis gritar-lhe algo, mas era inútil: a música se elevava como se fôssemos surdos. Ele e eu seguimos dançando grudados com as camisas abertas. De seu peito ressumavam gotas luminosas. Sorríamos e eu pensei que poderia morrer olhando aquele sorriso.
A noite nos deixou ali como náufragos. O ar se tornava menos ar. Sem deixar de abraçá-lo, busquei o rosto dela entre as centenas de rostos que nos olhavam. Aqui me dou conta de que esta não é a história dele nem a minha, mas a história dela. Amanhã será ela quem a escreverá: ele e eu dançando e beijando-nos na Joy Eslava. "Não te preocupes", me acalmaria, e as palavras ecoariam como saídas de dentro de um túnel, sobrepondo-se à música. "Ela saberá terminar esta história da melhor forma que lhe pareça".
À distância, observei-a conversando com o barman: seu corpo parecia um arco; segundos depois ela estava terminando de tragar uma bebida azul, muito azul. Sob o cone de luz seu rosto filtrava uma certa semelhança com o do rapaz que me abraçava. No vidro do bar sua silhueta se refletia imprecisa, deformada. Réstias de uma luz difusa mantinham seu reflexo no vidro. Temi que aquela imagem fosse mais que um sonho. Senti que ela nos olhou com inveja. "Não lhe dê atenção. Tu e eu estamos onde ela não pode ir, "Eu ouvi", é por isso que ela nos sonha. Pergunto, sem entender: “Ela nos sonha”? Quando ela saiu invadiu-me o desespero de não saber o que aconteceria. Torno a perguntar "Ela nos sonha ou nos inventa?", mas ele não sabe a resposta ou preferiu não responder. Por fim, murmurou: "só ela o sabe. Nós estamos do lado de cá das coisas". E fez um gesto que não entendi. Dancei não pelo prazer de dançar mas pela distância que dá a dança quando há pouca coisa a falar. Eu precisava organizar meus pensamentos.
Suas últimas palavras deixaram-me com uma sensação estranha: "se ela deixar de sonhar-nos, nós deixaremos de existir". Ao levantar os olhos vi novamente seu sorriso. Contei-lhe meu sonho, falei sobre os poemas de Heaney e sobre aquela palavra que soava em meu sonho como um eco de címbalos, que jamais poderei traduzir. "É uma ladainha insuportável", ele disse, enquanto tentava me explicar que no sonho as coisas se repetem incansavelmente; falou de uma eternidade no sonho que não entendi. "Esta história não aconteceu, ou está por acontecer, o que é a mesma coisa", disse ao ver meu rosto assombrado pela dúvida. Fechei os olhos. Lembrei-me dessas palavras. Uma multidão enfurecida e bêbada avançava sobre mim, vinda de todos os lados. A lembrança da chegada a Madri foi um ardil a mais. Quis negar-me a ser sonhado, mas me faltava o desespero inato a algumas pessoas em situações tão inusitadas. Uma das portas do bar se abriu e induzi que poderia escapar. Dei alguns passos, mas sua mão segurou a minha. “Não sejas louco, ninguém escapa de um sonho. Se ela te sonha aqui é porque aqui deves ficar". Eu o escuto e fecho os olhos. O rosto dela me vem à memória. Ao abri-los estamos os três dançando. Não sei como isso aconteceu. As mãos dela serpenteavam em meu peito, sua língua fincou-se em minha nuca. Eu descansei minha mão em seu torso nu e o afastei um pouco; ao virar, percebi que ela olhava para mim; quis mostrar-se surpreendida. "Por que o afastaste", ela perguntou. Sua voz soava como metal. Dei de ombros. "Foi um instinto", disse. Segurei-a pela cintura. Dançamos agarrados. A música era quase inaudível. O ar era mais fumaça que ar: uma névoa espessa - acumulada por tantos cigarros acesos - flutuava sobre dezenas de corpos. Dançamos como se não estivéssemos tocando o chão. Perguntei-lhe qual era seu nome, mas ela não respondeu, "Eu quero ver-te de novo", pedi, e ela sorriu. Senti o peso do silêncio. Com o canto do meu olho eu podia ver que o espelho nos duplicava. Minha mão acariciou a pele de suas costas, como se pressentisse que ela estava prestes a escapar.
“Não vou escapar; também estou presa a um sonho", respondeu-me. Enquanto nos fitávamos, ele chegou e firmou meu ombro. Senti seus dentes lúdicos mordendo o lóbulo de minha orelha. Ela nos olhava e ria sem motivo. Ele disse: "Eu sou o reflexo dela em teu mundo; ela não pode vir até aqui, por isso inventou-me ..." Tentei responder, mas ela continuou: "... e ele te inventa", eu pedi que se calasse e, como se não estivesse me ouvindo, concluiu: "... e tu também o inventas. Os três somos a matéria de teus sonhos. Nada disso existirá amanhã". Ia dizer-lhe que não era verdade, mas preferi sair.
Comecei a andar no meio da multidão. Imaginava que a porta do bar se abria e fechava constantemente. Fui até ela. Ao empurrá-la, transportei-me ao quarto do hotel. Havia ainda o som abafado de outro lugar. Eu fecho a porta e olho para o livro de Seamus Heaney em minhas mãos. Eu acho que dormi lendo os poemas. Repito Anahorish entendiado, com a impressão de que eu imaginara uma história na qual alguém conjectura o significado da palavra. Eu vou escrever esse conto amanhã, digo a mim mesmo e caio no sofá. À minha direita há uma cesta cheia de papéis, um espelho oval cheio de nuvens cinzentas. O som da água vem da cozinha. Eu mal posso ouvir o disco de Clannad. Penso: "Esta história não aconteceu, ou ainda está para acontecer, o que dá no mesmo."
Eu me levanto e vou desligar a torneira.
Madri, 2 de dezembro de 1998
Fonte: http://zafralitenespanol.blogspot.com.br/2009/12/joy-eslava-de-carlos-pintado.html
Tradução livre: Antonio Damásio Rêgo Filho
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