quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Roberto Piva

VISÃO 1961
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
         invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma 
         flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido 
         maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume 
         das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de 
         chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
         cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro 
         da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
         lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas 
         tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria 
         plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes 
         de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um 
         Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu 
         que renascem nas caminhadas 
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando 
         aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos 
         visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias 
         vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação 
         gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela 
         Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos 
         secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias 
         de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar 
         asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
         em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu 
         e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas 
         engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas 
         sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha 
         verteram monstros inconcebíveis 
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com 
         transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos 
         das Catedrais sem Deus
imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências 
         pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão 
         de novos idiotas
os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando 
         em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse 
afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore 
         branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos 
         até o século futuro 
meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho
         platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas
          irreais do meu Delírio
arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por 
         quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas 
         adolescentes numa Apoteose de intestinos 
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando 
         a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz 
         exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo 
         cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes 
minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana semi-aberta da
         Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras 
         cruzadas no olhar 
as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris
         de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das 
         portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam 
         acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno 
         da noite no coração seco do amor solar 
meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de almofadas 
         furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno 
         estende até o Mar no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória 
         atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores 
         pulam no Caos


In Paranoia, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, pp. 7-20

Saiba quem foi Roberto Piva

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