terça-feira, 4 de setembro de 2012

Cecília Meireles

O RAMO DE FLORES DO MUSEU
1
Ó cinérea princesa, as vossas flores
ficarão para sempre mais perfeitas,
já que o tempo extinguiu brilhos e cores;
já que o tempo extinguiu a habilidosa
mão que levou, serenas e direitas,
a tulipa sucinta e a ardente rosa.

Não há mais ilusão de outra presença
que a do Amor, que inspirou graças tão finas
— que ninguém viu e em que ninguém mais pensa
porque os homens e o mundo são de ruínas.

E este ramo de pétalas franzinas,
leve, liberto da mortal sentença,
tinha, ó Princesa, fábulas divinas
em cada flor, sobre o nada suspensa.

2
Que fantasmas lerão, nas incolores
pétalas, as mensagens não aceitas
em nítidos momentos anteriores?

Que fantasmas verão a vossa airosa
figura erguendo as claras mãos desfeitas,
noutro império, a uma luz mais gloriosa?

Ó cinérea Princesa, é muito densa
no mundo humano a trama das neblinas. . .
A floresta do absurdo é negra, é imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.

Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferença.
Mas, entre vãs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vença.


OS GATOS DA TINTURARIA
Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram polícromos vestidos.

Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos, 
onde apagado cada um jazia, 
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria, 
xadrez sem fim, por onde os ruídos 
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos 
bocejos, na dispersão vazia 
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia 
da renúncia, e, tranquilos vencidos, 
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos, 
mas baixam a pálpebra fria.

BALADA DE OURO PRETO
Parei a uma porta aberta 
para mirar um ladrilho.
Veio de dentro o leproso 
como quem sai de um jazigo. 
Caminhava ao meu encontro, 
sinistramente sorrindo.

Mas vi-lhe os braços de líquen, 
e as duas mãos desfolhadas, 
que cauteloso escondia 
nos fundos bolsos das calças. 
Chamas de um secreto inferno 
em seu sorriso oscilavam.

Fora menos triste a lepra 
do que o fogo do sorriso.
E era linda aquela casa 
com o vestíbulo vazio; 
e era alegre aquela porta 
de claro azulejo antigo.

Ó santos da Idade Média, 
descei por esta ladeira, 
parai a esta porta suave, 
que de azul toda se enfeita, 
tocai estes braços fluidos 
que vão sendo rosa e areia,
tornai-os firmes e pulcros,
com mãos lisas, dedos novos,
para que este homem não fite
ninguém mais com os mesmos olhos,
e seja outro o seu sorriso
per saecula saeculorum.

[In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 341-344]



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