1
Ó cinérea princesa, as vossas flores
ficarão para sempre mais perfeitas,
já que o tempo extinguiu brilhos e cores;
já que o tempo extinguiu a habilidosa
mão que levou, serenas e direitas,
a tulipa sucinta e a ardente rosa.
Não há mais ilusão de outra presença
que a do Amor, que inspirou graças tão finas
— que ninguém viu e em que ninguém mais pensa
porque os homens e o mundo são de ruínas.
E este ramo de pétalas franzinas,
leve, liberto da mortal sentença,
tinha, ó Princesa, fábulas divinas
em cada flor, sobre o nada suspensa.
2
Que fantasmas lerão, nas incolores
pétalas, as mensagens não aceitas
em nítidos momentos anteriores?
Que fantasmas verão a vossa airosa
figura erguendo as claras mãos desfeitas,
noutro império, a uma luz mais gloriosa?
Ó cinérea Princesa, é muito densa
no mundo humano a trama das neblinas. . .
A floresta do absurdo é negra, é imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.
Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferença.
Mas, entre vãs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vença.
OS GATOS DA TINTURARIA
Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram polícromos vestidos.
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,
ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia,
abstratos lumes sucumbidos.
No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,
os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.
E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranquilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.
Olham ainda para os vestidos,
mas baixam a pálpebra fria.
BALADA DE OURO PRETO
Parei a uma porta aberta
para mirar um ladrilho.
Veio de dentro o leproso
como quem sai de um jazigo.
Caminhava ao meu encontro,
sinistramente sorrindo.
Mas vi-lhe os braços de líquen,
e as duas mãos desfolhadas,
que cauteloso escondia
nos fundos bolsos das calças.
Chamas de um secreto inferno
em seu sorriso oscilavam.
Fora menos triste a lepra
do que o fogo do sorriso.
E era linda aquela casa
com o vestíbulo vazio;
e era alegre aquela porta
de claro azulejo antigo.
Ó santos da Idade Média,
descei por esta ladeira,
parai a esta porta suave,
que de azul toda se enfeita,
tocai estes braços fluidos
que vão sendo rosa e areia,
tornai-os firmes e pulcros,
com mãos lisas, dedos novos,
para que este homem não fite
ninguém mais com os mesmos olhos,
e seja outro o seu sorriso
per saecula saeculorum.
[In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 341-344]
[In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 341-344]
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