domingo, 9 de setembro de 2012

Cecília Meireles

CANÇÃO
Se de novo passares, 
não procures por mim. 
Preservemos o fim 
dos saudosos olhares.

Bem sei que a noite e os rios 
engendram muita flor 
parecida com o amor,
em seus ermos sombrios.

Mas nem penso aonde vais. 
Adormeço nos prados 
com os lábios ocupados 
no néctar do jamais.

Um tempo sem fronteiras 
se abriu diante de nós.
Quando tiveram voz
as verdades inteiras?

Ai, talvez noutro instante 
chegue perto de ti, 
para ver que perdi 
minha alma antiga, — e cante.

Talvez chegue, talvez, 
mas que não seja agora,
quando quem foste chora 
aquilo que não vês.

Uma vaga canção 
cantarei com doçura,
e será morte escura 
sobre o meu coração.

DECLARAÇÃO DE AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Senhora, eu vos amarei numa alcova de seda, 
entre mármores claros e altos ramos de rosas,
e cantarei por vós árias serenas 
com luar e barcas, em finas águas melodiosas.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
andavam nos campos, agora.)

Para ver vossos olhos, acenderei as velas 
que tornam suaves as pestanas e os diamantes. 
Caminharão pelos meus dedos vossas pérolas,
— por minha alma, as areias destes límpidos instantes.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
começam a sofrer, agora.)

Estaremos tão sós, entre as compactas cortinas, 
e tão graves serão nossos profundos espelhos 
que poderei deixar as minhas lágrimas tranquilas 
pelas colinas de cristal de vossos joelhos.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
estão sendo mortos, agora.)

Vós sois o meu cipreste, e a janela e a coluna 
e a estátua que ficar, — com seu vestido de hera; 
o pássaro a que um romano faz a última pergunta, 
e a flor que vem na mão ressuscitada da primavera.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
apodrecem no campo, agora...)

In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 356-357


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