FELICE
Havia algo de nacional-socialismo em meu olhar.
Era à noitinha. Ela então veio a mim
bem devagar: deixara a cidade, algum tipo de passado
e outro dono, talvez.
(Porque tudo, quase tudo, se resume a ter um dono.)
Alguns dias se passaram e seu cheiro, seu olhar desamparado
e seu ar de forasteiro
-tudo isso me exasperava.
ela parecia temer ser violada.
E assim ficamos um tempo sem medida
até finalmente chegar o momento da tortura.
Ela implorava para nunca ser lembrada, miava agudo
de uma maneira que apenas aguçava a minha vontade:
"Quando eu descobri essa delícia?" -eu murmurava
enquanto vagava pela casa à sua procura-
"Que deus nostálgico do horror me trouxe
para o centro desse desejo inextinguível?"
Ela se escondia atrás da porta, ou no banheiro,
atrás do fogão ou tiritando sob a cama.
Eu a caçava cheio de ardor,
metia-lhe dentro do meu carro e a obrigava
a rever toda a cidade em pleno sol de abril.
Era de conhecimento quase geral, e no máximo
pagavam-lhe um copinho de sorvete.
BALADA HEBRAICA
Ao vê-los escuros
Ao vê-los gastos
-pântano, memória e tumba-
lembro que Herzl teve suas ideias
depois de escutar Wagner.
INUNDAÇÃO
Não sabendo hoje mais do que eu já soube
como alguém que descobre em si o gene da derrota
ouço a canção de ninar abortos
todos esses hinos de balcânica euforia:
subterrâneos vivos
ossários de papel notícia.
Fonte: Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima, domingo, 07 de outubro de 2012.
Sobre Leandro Samartz
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