terça-feira, 9 de outubro de 2012

Manoel de Barros


II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique
à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV
No Tratado das Grandezas do ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
E quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V
Formigas-carregadeiras entram em casa de bunda.

VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a 
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele 
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso partir de 
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no
mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em 
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato 
sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X
Não tem altura o silêncio das pedras.

Manoel de Barros, Poesia Completa, são Paulo: Leya, 2010, pp. 300-301

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