II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique
à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
E quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas-carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para
cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um
torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no
mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na
voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.
Manoel de Barros, Poesia Completa, são Paulo: Leya, 2010, pp. 300-301
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