domingo, 16 de dezembro de 2012

Maria do Sameiro Barroso

O ÓPIO DA MEMÓRIA
A primeira luz de uma página em branco concentra
em si, o espaço solar, os fetos marinhos,
as tulipas do mar, uma espinal-medula primitiva
e o corpo é o desejo extenso, um circunlóquio de música,
onde tudo se busca e transfigura,
no auge da sede, no fulgor dos rumores,
porque todo o seu límpido instante é um corpo
de palavras transgressoras.

No silêncio, há versos, reversos, sombras carregadas,
transparentes solstícios.
Pela pulsação errática, os meteoros deslizam
e as rodas inventam os mecanismos, onde um ópio
delirante circula, as nuvens se movem, e a consciência lateja.

Os textos são nevrálgicas fontes, nebulosas de fogo
onde o gelo se concentra.
A intermitência, a vida, os recortes respiráveis,
a busca de um horizonte vegetal desenha-se
na poeira cósmica dos olhos sacrificados,
pelos polvos à deriva.

Por vezes, apenas nas secreções marinhas,
as pálpebras encontram a serena melodia
a inundar a resposta.
Na pulsação singular, toda a matéria é vazio,
plenitude, abundância, onde as melodias se enredam,
se alargam à sede.
Para chegar à saciedade, talvez já não haja caminho,
nem pássaros no jardim que escrevo.
Talvez nos cárceres da memória,
ou apenas nas cicatrizes se inscreva 
o cristal iridiscente, o sol luminoso,
o céu de muitos espelhos, as constelações de luz,

o ardor de muitos séculos.

[Poemas da Noite incompleta, São Paulo: Escrituras, 2010, pp. 110-111]. 


AMADEO DE SOUZA-CARDOSO



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