quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Marguerite Duras

EXCERTO DE "YANN ANDRÉA STEINER"
Você entende, como resistir a uma coisa dessas, alguém tão pleno de infância que quer tudo junto, ao mesmo tempo. Rasgar os livros, queimá-los. E sentir medo pelo seu desaparecimento. Você sabia que o livro já existia. Você me dizia: o que a senhora pensa fazer? O que tudo isso quer dizer? Estar escrevendo o tempo todo, o dia todo? A senhora vai ser abandonada por todos, porque é louca, insuportável. Uma babaca... Nem vê que está bagunçando as mesas com tantos rascunhos, por toda a parte pilhas e pilhas...

Acontece de a gente rir junto dos seus acessos de raiva. De repente. Às vezes acontece você ficar com medo de que eu jogue o livro no mar ou o queime. Às vezes você volta às cinco da manhã das suas perambulações, das suas seções de contemplação daqueles inefáveis barmen dos grandes hotéis da colina, considerados os mais luxuosos do mundo. Feliz de voltar desses lugares maravilhosos. Muitas vezes estou dormindo quando você volta. Ouço você se dirigir à sala para verificar se o manuscrito está ali, em cima da mesa. E depois à cozinha, para ver se sobrou café no pacote, pão e manteiga e café!

Comecei a não falar mais com você. A somente lhe dar bom dia no meio da felicidade. A deixá-lo sozinho. A comprar-lhe bifes. A vê-lo apenas de manhã, saindo desgrenhado do seu quarto à procura de um café forte, e a rir até as lágrimas do seu ar de administrador, da sua fiscalização.

Você assustava, muitas vezes eu tinha medo de você. E em volta de nós se tinha medo por mim. Eu achava que a cada dia você era mais sincero, mas que era tarde demais para mim, que eu não podia mais conter você. Como nunca consegui conter o medo de você. Você não sabe me poupar do medo de ser morta por você. Todas as minhas amigas e conhecidas estão encantadas com a sua doçura. Você é meu melhor cartão de visitas. Para mim, sua doçura me leva de volta à morte, a qual você certamente sonha em me dar, sem saber. A cada noite.

Às vezes, sinto medo desde que você acorda. A cada dia, nem que seja somente durante alguns segundos, você se torna, como todos os homens, um assassino de mulheres. Isso pode ocorrer todos os dias. Às vezes, você dá medo como um caçador sem rumo, um criminoso em fuga. E disto, em volta de mim, acontecia que temessem por mim. Mas eu conservei isso, tenho medo de você. A cada dia, em momentos muito breves que lhe escapam, tenho medo do seu olhar sobre mim.

Às vezes, basta o seu olhar para eu ter medo. Às vezes, nunca te vi antes. Não sei mais o que vieste buscar nessa estação balneária tão frequentada  nessa temporada mortal, lotada, onde estás ainda mais só do que na tua cidade de província.

A fim, talvez, de conseguir matá-lo, expulsá-lo, não sei, acontece-me de nunca ter te visto antes. De te ignorar até o pânico. De não mais saber de modo algum por que estás aqui, o que vieste procurar aqui e também o que vais fazer de ti mesmo. O dia de amanhã é o único assunto que jamais abordamos.

Tu também não deves mais saber o que estás fazendo aqui, na casa desta mulher já idosa, louca de escrever.

Pode ser que seja como de costume, que seja sempre assim, que não seja nada, que tenhas simplesmente vindo porque estavas desesperado, como em cada dia da tua vida estás, e também durante alguns verões e a certas horas dos dias e das noites quando o sol deixa o céu, por exemplo, e penetra no mar a cada noite para sempre, tu não podes te impedir de querer morrer. Sei disso.

Nos vejo perdidos os dois na mesma espécie de natureza. Me acontece de ser invadida de ternura pela espécie de gente que somos. Instáveis, dizem as pessoas, loucos, um pouco. “Gente que não vai mais ao cinema, nem ao teatro, nem às recepções.” Gente de esquerda, está se vendo, é assim mesmo, não sabe mais viver, Cannes os aborrece e também os grandes hotéis marroquinos. O cinema, o teatro, tudo igual.


[In Yann Andréa Steiner, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, pp. 61-64].




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