Há quanto tempo estou vagando neste mar, neste deserto — neste abismo? Há quantas noites?
Ainda estão comigo a minha carne e os meus ossos, esteja
onde estiver ainda é em mim que eu estou viajando, assim parado mas girando com
a Terra e o seu eixo, com estas águas e o seu silêncio: com este frio que só
pode vir de um corpo imóvel ou projetado no infinito.
Já me parece ouvir sob os pés algo de estranho, os meus
dois pés e não os de outro: assim como uma música feita de areia, como quando
eu pisava a praia ainda que em pensamento, exatamente esta sensação de música
nos pés. Posso estar suspenso — a corda! —
mas toco com os pés
essa areia da infância, assim e cada vez mais nítida, penetrando-me mais do que
a penetro, sem que eu faça o mínimo esforço ou movimento. Que é um chão de
areia eu não tenho dúvida, irreal ou real, eu suspenso da corda ou apenas meu
pensamento, e esta lucidez que me põe tranquilo e ao mesmo tempo em espanto:
embora ainda calmo, muito mais calmo do que antes — terrivelmente calmo.
Destes pés é que me virá a revelação, qualquer que seja, e
não do meu fígado nem dos intestinos, nem das minhas mãos que nem sei onde
estão —: dos meus pés! Sinto, pressinto, algo tão silencioso e frio quanto eu
mesmo, como se fosse apenas uma continuação do meu corpo mas não sendo: MAS NÃO É — um outro mundo que bem pode ser o meu mas também um mundo
novo, completamente diferente, e que estou pisando pela primeira vez. Tocam-me
não as águas mas a areia que há no fundo dessas águas, a AREIA — e já lhe posso até adivinhar a cor só pelo tato:
vermelho, vermelha — como fazia em criança quando pegava alguma coisa no
escuro. — Fofo e vermelho.
Daqui sairei eu e vivo, tenho certeza, apesar do frio e
deste peso quase insuportável que suporto sobre os ombros, como se suportasse
todo o peso do mundo. Valeu-me ao menos para isso a minha experiência de
afogado, a minha inexperiência — e sobretudo o que me ficou da calma do irmão
em cima e fora da sua bicicleta, o irmão, respirando e andando comigo desde que
o enterraram dentro de mim. — E possível que este seja o seu mundo e ele me
tenha arrastado até aqui, preso a essa corda que eu comprei e armei julgando
ser minha: a corda justamente que se atira ao afogado para que não se afogue,
não se afobe — assim como eu ainda há pouco, antes de atingir esta praia.
In A Chuva Imóvel, In Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., pp. 277-278.
In A Chuva Imóvel, In Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., pp. 277-278.
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