quinta-feira, 11 de abril de 2013

Murilo Mendes

Mariana Alcoforado

A Isabel da Nóbrega

Transcurso o subsistente enigma crítico. Existiu Soror Mariana Alcofora­do, existiu o (intolerável?) capitão de cavalaria Noel de Chamilly; forjadas ou não, alteradas ou não por algum esperto literato, existiam até hoje, ignoro se até sempre, as cartas.
Na verdade, para muitos europeus que talvez desconhecessem, mesmo de nome, Os Lusíadas, o vinho do Porto e o — gêmeo — da Madeira, Portu­gal afigura-se um país resultante destas cartas; descoberto, sem que ela o soubesse, por Mariana Alcoforado.
Um comentário pessoal em torno deste nome não tem nenhuma relação com a história ou a crítica; mencionando-o, adoto o regime da confidência; pretendo apenas dialogar com o possível leitor.
Direi pois: Mariana é um nome da minha adesão. Reúne duas grandes senhoras bíblicas, Maria e Ana; alude também à poetisa Marianne Moore que semprevoando-se, trata com lucidez e ciência da linguagem os objetos; atenta à ideia do limite.
Alcoforado: nome singular, simétrico, porque composto de cinco sílabas de duas letras cada uma. A raiz “al” será relativa à origem mourisca da pa­lavra? O fato é que o Alentejo, onde vivia Mariana, sofreu influência dessa cultura.
Ninguém ignora qua as cartas tocaram escritores consideráveis: Racine, Saint-Simon, Rousseau, Stendhal, Rilke e muilos outros. Deram a deixa a Elizabetl Barrctt Browning para o tema dos Sonnets from the Portuguese. Segundo Rilke, teriam sido escritas por mão de sibila; personagem futurível que sempre me despertou terror e fàscino.
Difícil determinar se esta freira é pagã ou cristã; mesmo porque talvez ne­nhum teólogo-geógrafo conheça as fronteiras entre paganismo e cristianis­mo; sendo também absurdo rotular os pagãos de a-religiosos. Quanto ao cristianismo: vasto demais para se poder entendê-lo claramente.
De qualquer modo Mariana experimenta na carne e no espírito a fúria amorosa, palavra banal, mas que funciona. (No momento não disponho de nenhuma metáfora-arquétipo.) Aplicarei portanto a Mariana a etiqueta “cristopagã”, sem insinuar que ela seria cristã pelo espírito e pagã pela car­ne. A doutrina católica declara-os intimamente unidos; além disto reco­menda com insistência o amor carnal que não deve se limitar ao prazer momentâneo, mas acudir à perpetuação da espécie; Santo Agostinho e Santo Tomás dixerunt; logo, exclui-se a pílula. Discordo deste último pon­to: e como Paulo VI jamais lerá este livro, driblo a censura, continuando, mesmo de binóculo, a entrevê-lo, debruçado à sua janela parda, ou inseri­do na sédia gestatória, móvel felizmente já quase bissexto. Em quanto à terra, superpovoando-se, ameaça explodir à força de complexos proble­mas, e irresponde aos seus mútiplos apelos de paz universal.
Considerável, nas cartas, a prioridade atribuída ao tema do amor-paixão,  tratado em modo raro, fora dos esquemas estilísticos então vigentes na Península Ibérica; sem metáforas nem afetações cultistas. Segundo se escreveu, temos aqui a anatomia do amor português levado à saturação; mas, o que é incomum em Portugal, sem mancha de sentimentalismo ou excessos de “meiguice”, ausente o diminutivo; nem atenção ao cenário e à natureza física. Com alguma coisa da precedente Teresa de Ávila e o preanúncio do ímpeto de Mathilde de la Mole.
Nessa fúria amorosa todas as probabilidades se afirmam dentro da contra­dição, se combinam e se destroem. Mariana sabe que não tem saída; nisto reside seu caráter patético, exposto literalmente com vigor e audácia.
Seus limites determinam-lhe a faixa da grandeza. É terrestre: “Já não quero honra nem religião senão para amar-te perdidamente a vida inteira.” Inicia- se um diálogo-monólogo: “Escrevo mais para mim do que para ti.” Ama o próprio texto: “Custa-me mais a deixar esta carta do que a ti custou a dei­xar-me talvez para sempre”; “Então este desespero só é verdadeiro nas mi­nhas cartas?" Consciente da sua abjeção (quem sabe seria masoquista), quer exorcizá-la: “Em certos momentos parece-me que era capaz de levar a mi­nha sujeição até servir aquela que amas”. E seu impudor: igual ao seu pudor.

Esta freira reversível, constrangida a trazer um véu preto em vez dum véu vermelho disfarçando espada, pressente, antes de Baudelaire e Michel Leiris, o amor como forma de tauromaquia. Meduséia talvez, mas não tele- meduséia; pelo que o amante, já agora reinstalado na França, pode escapar à sua fúria.
Como seria, fisicamente falando, a palavra Marina Alcoforado? Conservo para mim a trama do seu retrato; a atenção que dedico ao leitor não vai até o ponto de desvendá-la. Na época do julgamento universal (dogma que espaventava Quevedo) saberei se esse retrato discrepa ou não do original; tam­bém tu, leitor amigo, o saberás; além de, naturalmente, muitas outras coisas.

[In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 1421-1423].


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