sexta-feira, 17 de maio de 2013

Hilda Hilst

Excerto de "Com os meus olhos de Cão"

Edvard Munch
Percebo que tenho a cabeça demasiado inclinada para o lado esquerdo. Tento fazê-la voltar ao centro. Vai gradativamente inclinando-se para a esquerda. E o fato de eu estar em pé também me preocupa. Como é possível que possa manter-me em pé? Ficaria mais cômodo de quatro, os olhos raspando o chão, as mãos bem abertas coladas à superfície das ruas. Me daria maior seguran­ça. Agora devo entrar no carro. Vou à casa de Isaiah. Sempre nos compreendemos apesar de quase nunca nos falarmos. É certo que ele vive com a porca e pare­cia estar bem da última vez. E por que não viver com hilde? Um nome germânico. Deve ser loira. Quero dizer deve ser uma porca branca. São mais raras. E o que vou dizer a Isaiah? Daquilo. Ele vai perguntar: tende ao zero? As ruas movimentadas. Cinco horas da tarde, vejo no relógio da avenida. Paro num sinal. Um homem velho carregando livros e papéis fica em dúvi­da se deve atravessar. Um dos papéis vai ao chão. Um outro homem agacha-se para ajudá-lo. E não é que se conhecem? Sorriem. Dão-se calorosamente as mãos. O que se agachou coloca as mãos sobre os ombros do velho. As pessoas desviam-se dos dois e fazem caras mal-humoradas. O velho parece explicar alguma coisa sobre os papéis. Está agitado. Não é possível, ele está chorando. As buzinas atrás de mim. Avanço. Olho o retrovisor. Aquele que se agachou aponta para o ve­lho, o quê? O bar da esquina. Perco-os de vista. Estou comovido e tenso. Eu mesmo mostrando os meus papeis a um outro alguém e assim em desespero? Minhas equações. Esperanças: Amós Kéres, matemáti­co, expôs hoje aos meios científicos a sua concepção de um universo unívoco. Físicos e matemáticos cumprimentam-no, logo mais no jornal das onze. Quase atro­pelo um cachorro. Enfim Isaiah. As calças surradas, o pulôver preto, hilde vem logo atrás. Vários pares de olhos sobre nós. Os vizinhos. Os olhos de hilde sobre mim. Isaiah: entra meu amigo, entra, hilde entra tam­bém. Você se lembra dela não? hilde roça minhas per­nas. Igual os gatos. Digo extraordinária e sempre muito graciosa assim? Oh sempre assim diz Isaiah. Triângulos de acrílico suspensos do teto. Uma grande mesa e mui­tos papéis preenchidos com tinta roxa. Não te pertur­bo? Amós há vinte anos que ninguém me perturba, há vinte anos estas roxas esperanças e a única surpresa resolvida foi a chegada de hilde. Um lindo não evidente.   Em seguida: o que há com sua cabeça, é torcicolo? Vem, te senta, toma vinho, quer? Digo que sim e conto- lhe tudo: a colina, a ponta dos sapatos, as formigas, o pensamentear sobre os sons e aquilo de significado incomensurável.
Tive uma vez algo parecido. Mas vi formas. Quais?
Poliedros. Resplandeciam.
E então?
Então compreendi que só existem poliedros. Eu mesmo não existia. Até hoje tenho certeza disso.
De quê?
Certeza de que não existo. Foi um alívio. Porisso posso viver com hilde. Ela, bem vês, também não é um poliedro. Não existimos, compreende? Estamos muito feli­zes. Beba, Amós. Esperança. Não arranque os frutos verdes. Beba. E importado esse aí. Kadek me deu toda adega, não se lembra? Pobre amigo, almejava parecença. Dizia que o exato era ser pinguço como todos nós aqui onde vivemos. Só cachaça. Lucrei. Mesmo não existindo me deleito. Beba. Amanhã vens buscar o carro. Bebo. No quinto copo tento uns poemas. No décimo termino-os. Então leio em voz alta:

Vértice Aresta e Face
Vi o suspiro da ave.

Hilda Hilst, Com os meus olhos de cão, São Paulo, Ed. Globo, 2006, pp. 42-44

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