Excerto de "Com os meus olhos de Cão"
|
Edvard Munch |
Percebo
que
tenho a cabeça demasiado inclinada
para o lado esquerdo.
Tento fazê-la voltar ao
centro. Vai gradativamente
inclinando-se para a esquerda. E o fato de eu
estar em
pé também me preocupa. Como é
possível que possa
manter-me em pé? Ficaria
mais cômodo de quatro,
os olhos raspando o
chão, as mãos bem abertas coladas à
superfície
das ruas. Me daria maior segurança. Agora devo
entrar no carro. Vou à casa de Isaiah. Sempre
nos compreendemos apesar de quase nunca nos falarmos. É
certo que ele vive com a porca e parecia
estar bem da
última vez. E por que não
viver com hilde? Um nome germânico. Deve ser loira. Quero dizer deve ser uma
porca branca. São mais raras. E o que vou dizer a
Isaiah? Daquilo. Ele vai perguntar: tende ao
zero? As ruas movimentadas. Cinco horas da tarde, vejo no relógio da avenida.
Paro num sinal. Um homem velho carregando livros e papéis fica em dúvida se
deve atravessar. Um dos papéis vai ao chão. Um outro homem agacha-se para
ajudá-lo. E não é que se conhecem? Sorriem. Dão-se calorosamente as mãos. O que
se agachou coloca as mãos sobre os ombros do
velho.
As pessoas desviam-se dos dois e fazem caras mal-humoradas. O velho parece
explicar alguma coisa sobre os papéis. Está agitado. Não é possível, ele está
chorando. As buzinas atrás de mim. Avanço. Olho o retrovisor. Aquele que se
agachou aponta para o velho, o quê? O bar da esquina. Perco-os de vista. Estou
comovido e tenso. Eu mesmo mostrando os meus papeis a um outro alguém e assim
em desespero? Minhas equações. Esperanças: Amós Kéres, matemático, expôs hoje
aos meios científicos a sua concepção de um universo unívoco. Físicos e
matemáticos cumprimentam-no, logo mais no jornal das onze. Quase atropelo um
cachorro. Enfim Isaiah. As calças surradas, o pulôver preto, hilde vem logo
atrás. Vários pares de olhos sobre nós. Os vizinhos. Os olhos de hilde sobre
mim. Isaiah: entra meu amigo, entra, hilde entra também. Você se lembra dela
não? hilde roça minhas pernas. Igual os gatos. Digo extraordinária e sempre
muito graciosa assim? Oh sempre assim diz Isaiah. Triângulos de acrílico
suspensos do teto. Uma grande mesa e muitos papéis preenchidos com tinta roxa.
Não te perturbo? Amós há vinte anos que ninguém me perturba, há vinte anos
estas roxas esperanças e a única surpresa resolvida foi a chegada de hilde. Um
lindo não evidente. Em seguida: o que há com sua cabeça, é torcicolo? Vem, te
senta, toma vinho, quer? Digo que sim e conto- lhe tudo: a colina, a ponta dos
sapatos, as formigas, o pensamentear sobre os sons e aquilo de significado
incomensurável.
Tive uma vez algo parecido. Mas vi formas. Quais?
Poliedros. Resplandeciam.
Então compreendi que só existem poliedros. Eu mesmo não
existia. Até hoje tenho certeza disso.
Certeza
de que não existo. Foi um alívio. Porisso posso viver com hilde. Ela, bem vês,
também não é um poliedro. Não existimos, compreende? Estamos muito felizes.
Beba, Amós. Esperança. Não arranque os frutos verdes. Beba. E importado esse
aí. Kadek me deu toda adega, não se lembra? Pobre amigo, almejava parecença.
Dizia que o exato era ser pinguço como todos nós aqui onde vivemos. Só cachaça.
Lucrei. Mesmo não existindo me deleito. Beba. Amanhã vens buscar o carro. Bebo.
No quinto copo tento uns poemas. No décimo termino-os. Então leio em voz alta:
Vértice Aresta e Face
Vi o suspiro da ave.
Hilda Hilst, Com os meus olhos de cão, São Paulo, Ed. Globo, 2006, pp. 42-44
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