sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ivan Junqueira

PENÉLOPE: CINCO FRAGMENTOS

I
Pois foi aqui, nestas areias, 
entre estes íngremes granitos, 
que o aprisionaste em tuas teias
de astutos fios infinitos.

Sim, foi aqui. Ele partira
de sua ítaca nupcial.
Trirremes rumo a Troia, a pira
dos deuses no ermo litoral.

Por três anos, da mesma lã,
fiaste em surdina a infinda tela.
Tudo era espera, ó tecelã!
No horizonte nem uma vela.

Agulha e linha, o teu destino
era o ir e vir daquele fio,
pêndulo amargo, áspero sino
vibrando inútil no vazio.

O que é de Ulisses, o Odisseu,
suspenso no arco das espumas?
O que é do herói, o que é do teu
esposo envolto pelas brumas?

Sob o penhasco que anoitece,
o som das ondas vai rolando.
Penélope tece e destece.
O mar é onde, o tempo é quando.


II
Diz a lenda que o cenário 
era fluído, imaginário:

À sua roda, os aqueus, 
e ela, virtuosa, entre véus.

Dá-la-ia o pai ao que fosse 
o mais arguto e mais doce,

ao que mais luz ostentasse 
no aço da astúcia e da face.

Levou-a Ulisses nos braços, 
entre as algas e os sargaços;

levou-a. O gume das vagas 
se fundia ao das adagas.

Levou mar afora a esposa
e agora em Ítaca a pousa

como um pássaro glorioso, 
em meio às plumas do gozo.

Penélope o olha no rosto:
o herói faísca ao sol-posto.

De Icário a esplêndida filha 
põe o pé e o cetro na ilha.


III
Cingida pelas ondas, ítaca flutua
como a côncava nau de um rei no mar violeta.
Além das vinhas e olivais, a escarpa nua,
a névoa, a espuma, o espaço, a dura linha reta.
Em silêncio, Ítaca recorda: havia um poeta,
e um tempo de discórdia sob o sol e a lua.
E uma rainha havia. E havia mais: a sua
volúpia de estancar as horas na ampulheta.
Errava Ulisses sobre o imenso e rude oceano,
e em seus domínios os aqueus, agora em bando,
iam-lhe os bois e os bens aos poucos devorando.
Absorta e fiel, os dedos ágeis sobre o pano,
Penélope tecia o intérmino sudário.
E o sono lhe era o esposo no átrio solitário.

IV
We are the hollow men.
T. S. Eliot

Nós somos os pretendentes,
o espírito ermo de arrojo,
a cupidez entre os dentes,
a fronte ungida de nojo.

Nossas vozes sem doçura
são como um coro de esgares
cuja surda partitura
suja o branco dos altares.

Não temos nome ou semblante.
Somos todos uma escória,
Uma anônima e arrogante
Poeira rala e sem memória.

Em nossas mãos, dardo ou lança
nada valem: são brinquedos;
mais do que nós, uma criança
lhes sabe o gume e os segredos.

Aqui estamos, ó rainha,
e não há quem nos demova;
aqui estamos, na bainha
de teu corpo e tua alcova.

Ai de nós, homens sem flama!
A esposa fiel trapaceia:
fia ao sol a infinda trama
e à noite desfaz a teia.

Foi-se Ulisses: sua nau
afundou no mar vinhoso.
Quando, ó Penélope, o sal
provaremos de teu gozo?

Nós somos os pretendentes,
a alma ambígua, o olhar oblíquo
— somos o cume e as vertentes
do que há de mais iníquo.

V
Só. Estou só. O mar que me circunda
é um dédalo de arcaicas escrituras,
de alígeras e esfíngicas criaturas
cujo perfil o azul do oceano inunda.
Meu rei se foi. Em que ânforas e agruras
agora, em desespero, ele se afunda?
Que ninfa o enfeitiçou, que água profunda
lhe enche de horror as órbitas escuras?
Ó doce e astuto Ulisses, tuas vinhas
sangram de dor, definham as espigas,
o ouro esfarela, enfezam as olivas
e a terra seca engole os bois que tinhas.
Só. Estou só. Tudo em redor esquece:
o olho que chora, a alcova, a mão que tece.

Junqueira, Ivan. Poemas Reunidos, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999, p. 168-175.



Nenhum comentário:

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...