quinta-feira, 23 de maio de 2013

Maria Gabriela Llansol


Excerto de "Causa Amante"
5 — estou hoje intrigada por uma palavra: marfolho. 
Encontrei-a no tesouro vegetal da língua; 
e com o modo por que encontrei Alice na igreja de Santa Engrácia, e trouxe para casa a Proclamação de Lisboa, cidade que deve ser tomada, em meu entender, sem capitular;

em conluio com as ruínas, esta igreja é bem inquietante,
com a sua multidão em que não distingo um só conhe­cimento; não distingo os pés que, no entanto, se mo­vem lentamente; a terra, ela move-se. Procuro sempre Alice que tem as pálpebras descidas e que não provoca enganos, como os cegos de olhos abertos. Estava en­costada a um degrau de pedra, com o capuz batido pelo vento, e deve ter distinguido os meus passos,
ou a minha presença,
através de um dos seus sentidos ocultos que a encami­nham sempre para mim: — «Estará morta, ou ainda viva?» — perguntou-me: — «Quando voltamos para casa?» — «Hoje, o que me atrai é estar em Lisboa, andar por Lisboa na meia solidão em que podes sem­pre acompanhar-me.» — Pôs a mão no meu braço, e transpusemos a abertura como se tivéssemos os mesmos pés. O Tejo era diferente do da minha lembrança, muito mais rio preciso do que a imensidão que eu jul­gara.

6 —                       encontrei-me
Alexander Leal

numa faixa do rio, ao fim da noite; 
há tanto tempo que a olhava, à procura; 
a meu lado, estava um homem pequeno, cujos sinais correspondem exactamente aos de João da Cruz, visto através dos seus textos, e do modo de viver a sua vida; era evidente que, para mim, aquele homem era, sobre­tudo, enquanto bosque, sombra; e enquanto força,
corrente; disse-me que tinha um peso secreto sobre ele. Sem sequer o ouvir, dispus-me a pedir-lhe conselho, a que já sou menos rebelde; ele interrompeu a sua confi­dência, e antecipou-se à formulação da minha primeira pergunta: — ...não sei se poderás voltar a optar; ali está a água — disse —, a água do Tejo, com esse nome, e nenhum outro; atrás de nós está o casario de Lisboa, «casario subindo as colinas», submetido a essa expres­são, e a nenhuma outra; hoje, é este dia do século, an­tes do terramoto que há-de destruir Lisboa, e de ne­nhum outro; hoje, eu estou aqui a teu lado para que narres o nosso encontro, até à última pausa da palavra que te dirigi; já baixas a cabeça ao peso do trabalho, e à necessidade inexorável de contar. — Tento, então, fa­zer o que ele diz: precisar, no escuro, o nome da parte de Lisboa que se ergue atrás de mim, 
ver povoadas suas ruas íngremes; 
quando me encontrei a reaprender a escrever, 
ou a prosseguir o caminho de suspender estas emoções
por algumas horas, já era mais de meia-noite, e João da Cruz, sempre vivo em sua fala e movimentos, ainda não me abandonara. Falava-me da sua própria vida pessoal, de um drama que o atingira parecendo, ele, o inacessível; torcia e retorcia as mãos, e ora me olhava, e olhava o rio, ora olhava os contrafortes do castelo, que se apagava sobre nós.

Causa Amante, Lisboa: Relógio D´Água, 1996, pp. 11-113.

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