Excerto de "Causa Amante"
5 — estou hoje intrigada por uma palavra: marfolho.
Encontrei-a no tesouro vegetal da língua;
e com o modo por que encontrei Alice
na igreja de Santa Engrácia, e trouxe para casa a Proclamação de Lisboa, cidade
que deve ser tomada, em meu entender, sem capitular;
em conluio com as ruínas, esta igreja é bem inquietante,
com a sua multidão em que não distingo um só conhecimento;
não distingo os pés que, no entanto, se movem lentamente; a terra, ela
move-se. Procuro sempre Alice que tem as pálpebras descidas e que não provoca
enganos, como os cegos de olhos abertos. Estava encostada a um degrau de
pedra, com o capuz batido pelo vento, e deve ter distinguido os meus passos,
ou
a minha presença,
através de um dos seus sentidos ocultos que a encaminham
sempre para mim: — «Estará morta, ou ainda viva?» — perguntou-me: — «Quando
voltamos para casa?» — «Hoje, o que me atrai é estar em Lisboa, andar por
Lisboa na meia solidão em que podes sempre acompanhar-me.» — Pôs a mão no meu
braço, e transpusemos a abertura como se tivéssemos os mes mos pés. O Tejo era diferente do da minha lembrança, muito
mais rio preciso do que a imensidão que eu julgara.
6 — encontrei-me
Alexander Leal |
numa faixa do rio, ao fim da noite;
há tanto tempo que a
olhava, à procura;
a meu lado, estava um homem pequeno, cujos sinais correspondem
exactamente aos de João da Cruz, visto através dos seus textos, e do modo de
viver a sua vida; era evidente que, para mim, aquele homem era, sobretudo,
enquanto bosque, sombra; e enquanto força,
corrente; disse-me que tinha um peso secreto sobre ele. Sem
sequer o ouvir, dispus-me a pedir-lhe conselho, a que já sou menos rebelde; ele
interrompeu a sua confidência, e antecipou-se à formulação da minha primeira
pergunta: — ...não sei se poderás voltar a optar; ali está a água — disse —, a
água do Tejo, com esse nome, e nenhum outro; atrás de nós está o casario de
Lisboa, «casario subindo as colinas», submetido a essa expressão, e a nenhuma
outra; hoje, é este dia do século, antes do terramoto que há-de destruir
Lisboa, e de nenhum outro; hoje, eu estou aqui a teu lado para que narres o
nosso encontro, até à última pausa da palavra que te dirigi; já baixas a cabeça
ao peso do trabalho, e à necessidade inexorável de contar. — Tento, então, fazer
o que ele diz: precisar, no escuro, o nome da parte de Lisboa que se ergue
atrás de mim,
ver povoadas suas ruas íngremes;
quando me encontrei a reaprender
a escrever,
ou a prosseguir o caminho de suspender estas emoções
por algumas horas, já era mais de meia-noite, e João da
Cruz, sempre vivo em sua fala e movimentos, ainda não me abandonara. Falava-me
da sua própria vida pessoal, de um drama que o atingira parecendo, ele, o
inacessível; torcia e retorcia as mãos, e ora me olhava, e olhava o rio, ora
olhava os contrafortes do castelo, que se apagava sobre nós.
Causa Amante, Lisboa: Relógio D´Água, 1996, pp. 11-113.
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