Excerto do romance "HANÓI"
Ele entrou no mercado asiático, acenou para Alex e pegou um
cesto de plástico que encheu com itens pequenos. O critério era um só: que
levasse bastante tempo para passar no caixa. Por cima, colocou um pé de
alface, feito um buquê.
Ela disse oi e passou o código de
barras de uma lata de milho no leitor.
Escuta, não sei se te interessa,
ele disse. Mas vou entregar o meu apartamento em breve, e náo vou ficar com
nada do que tem lá dentro. Vou colocar um anúncio oferecendo no meu prédio, mas
estava aqui fazendo compras e me ocorreu que poderia falar com você. Quem sabe alguma coisa tem
utilidade.
Achei que você ia ficar uns
tempos fora da cidade e depois voltava, ela disse, passando no leitor o código
de barras de um pacote de macarrão sabor espinafre, made in Taiwan.
Ah, não. Eu não vou voltar.
Alex fez um breve silêncio,
depois confirmou, você disse que não vai ficar com nada do que tem no seu
apartamento?
Isso.
Eu na verdade estava era
precisando de um computador.
David parou, pensou, o laptop era
um bem móvel que não deixaria de ter utilidade, mas que diabos.
Não vou levar meu laptop. Ele não
está novo em folha, mas funciona bem. Pode ficar com ele, se quiser.
Ela parou de somar os itens da
cesta e olhou-o nos olhos, com curiosidade.
Vamos fazer o seguinte, David
falou. Eu vou em casa e já volto com o laptop. Se você gostar, é seu.
Estou precisando de panelas, ela
acrescentou, enquanto ele pegava suas duas sacolas de compras.
Meia hora mais tarde, David
estava de volta com o laptop debaixo do braço e três panelas encaixadas uma dentro
da outra, empunhadas pelos cabos.
Trung, que arrumava bananas num
cesto, olhou para ele como quem tentasse ler as entrelinhas das suas rugas de
expressão. Quem sabe veria o que havia para se ver. Talvez houvesse um desapego
artificial e ansioso em David. Tome, leve o laptop, leve as panelas — quem sabe
todo o comportamento dele fosse comparável ao de um mau palhaço de circo. Até
para ser ridículo é necessário certo grau de seriedade.
Antes de sair de casa David
apagou os seus arquivos, por nenhum motivo além do fato de que náo teriam
utilidade para Alex. Não havia segredos de Estado ali.
Pelo sim, pelo não, resolveu
deixar sua música. Renomeou a pasta: ouça
isto Alex.
Talvez no futuro próximo ele
pudesse lhe perguntar se tinha chegado a ouvir, e nesse caso se tinha gostado,
e nesse caso do que tinha gostado mais. Pensava nela naquele momento como uma
pessoa do tipo Nina Simone. Tinha quase certeza de que Alex gostaria de ouvi-la
cantando “Feeling Good”.
Lembrou-se mais uma vez daquele
doente, o do diagnóstico errado.
Se novos exames revelassem que na
verdade ele não estava doente, David pensou, talvez fosse uma troca válida.
Tudo o que ele tinha em troca de tudo de que precisava. E um diagnóstico errado
no meio do caminho, só para que aprendesse a diferença entre as duas coisas.
Como que para lhe dizer que
aquela não era uma possibilidade, uma pontada funda na cabeça quase o fez
perder o equilíbrio.
Alex não viu. Trung sim. Ele
levantou o rosto das bananas e seu olhar topou por um instante com o olhar de
David.
Depois Trung retomou seu
trabalho, como alguém talvez um tanto constrangido por ter visto o que acabara
de ver. O mau palhaço contando uma piada sem graça, os rostos impassíveis da
platéia. O mau palhaço prestes a perder o emprego.
Alex pegou as panelas, revirou
uma e depois outra.
David apanhou uma caneta largada
por ali e uma nota fiscal que alguém tinha deixado para trás. Escreveu seu
telefone no verso. Já tinha notado que estava perdendo aos poucos essa
habilidade tão simples, a escrita — e isso era esperado —, mas por enquanto sua
caligrafia ainda era legível.
Se você e o seu patrão quiserem
passar para dar uma olhada no resto, ele disse, entregando o pedaço de papel a
Alex.
Ela ainda exclamou obrigada pelo
computador e pelas panelas! antes que ele saísse para a rua e para a chuva que
voltava a cair.
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