sábado, 29 de junho de 2013

Herberto Helder

VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto 
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. 
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo 
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina 
os meus espinhos frios,
a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue 
da terra nocturna.

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, 
bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
E uma coisa estupenda a primavera que trabalha 
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. 
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água 
atenta, e amo a loucura — 
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.

Tenho medo de erguer a voz mais alto 
que o meu coração onde uma candeia 
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. 
Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, 
todos os mortos, todos os que amam 
entre sangue no mundo, entre as águas 
das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — 
e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, 
fundo-me no verbo interior da primavera 
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. 
Cantavas o que já se não quebra com o uso 
das vozes. Porque tu eras a minha 
água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam 
e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. 
Primavera, como cresces.
Desespero ou alegria, como correm 
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, 
evocar tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite 
com uma porta no coração para passar 
num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema 
junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras 
evaporam-se, reaparecem em espírito 
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.

Falo tão devagar que mal distingo 
a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam 
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar — como quem ressuscita.

In Ou o Poema Contínuo, São Paulo: A Girafa Editora, 2006, pp. 87-89

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