CANÇÃO DO BARCO
Há empurrões e tumulto,
coletes salva-vidas de menos:
isso é
óbvio;
então, por que não passar os últimos momentos
praticando nossa
modesta arte
como sempre fizemos,
criando um lago de conforto possivelmente falso
em meio à
tragédia?
Há algo a ser dito em favor disso.
Imaginem-nos, então, na orquestra do navio.
Todos permanecemos em nossos lugares, tocando
notas breves e
dedilhando e marcando o tempo
com nossos instrumentos cotidianos
enquanto os gritos e as
botas correm pesados.
Alguns pularam; seus casacos de pele e seu desespero
puxam-nos para baixo. Mãos crispadas se projetam em meio
[ao gelo.
O que estamos tocando? E uma valsa?
Há comoção demais
para que os outros possam distinguir com clareza,
ou então estão longe demais —
um alegre foxtrote, um velho hino meloso?
O que quer que seja, somos nós com os violinos
enquanto as luzes se esvaem e o grande navio afunda
e a água se fecha sobre ele.
In A Porta, trad. Adriana Lisboa, Rio de Janeiro: Rocco, 2013, pp. 109-110
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