Excerto de "Hanói"
A dor parecia mais forte do que nunca. Veio de madrugada,
quando não havia mais do que uma mínima sugestão de luz no seu quarto. David estava
sozinho, como queria. Certo? Não era o que ele queria?
Levantou-se para pegar o
analgésico. Suava frio. A náusea agarrou seu estômago e ele vomitou ajoelhado
diante do vaso, no banheiro do seu apartamento já quase vazio.
Alex não estava, nem Bruno, nem
Trung ou Huong ou Linh. Seus amigos músicos não estavam. Lisa não estava. Bob e seus antigos colegas de
trabalho não estavam. Os escritores famosos que haviam autografado livros para
ele quando trabalhava na livraria em Gold Coast, a garota radiante da tribo
indígena canadense. Luiz. Guadalupe. Seus primos. Miles Davis, Louis Armstrong
e Dizzie Gillespie não estavam. Christian Scott. Nem mesmo seu trompete estava
ali com ele.
Era somente a dor vertiginosa, a
vontade de descolar a cabeça do resto do corpo e atirá-la pela janela, como
Lisa tinha feito com o trompete. A dor e a cerâmica do vaso sanitário e a água
boiando ali, a água sempre voltando a boiar ali educadamente todas as vezes que
ele dava descarga. Seu estômago cuspindo o que houvesse para cuspir e o que não
houvesse. A nata de suor frio na testa, nas mãos.
Era extraordinário como a dor
simplificava as coisas.
Ele tomou o analgésico quando
conseguiu parar de vomitar, e foi se deitar de novo.
Pensou em conchas.
Pensou no que estariam fazendo
todas aquelas pessoas em Capitão Andrade, as pessoas que tinham visto Luiz ir
embora décadas antes, naquela leva contínua de romeiros escorrendo hemisfério
acima.
Perguntou-se onde estaria o piano
da avó de Guadalupe, em Hermosillo.
Pensou em Cuauhtémoc e seus pés
queimando sob orientação de Hernán Cortés. E no coração dos espanhóis prisioneiros, arrancados de seus
corpos em altares sacrificiais antes da queda da capital do império asteca.
Pensou no cachorro Oscar e no
chocolate do seu último dia.
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