sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Herberto Helder

II
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada 
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas, 
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas 
e o mover dos dedos 
e a suspensão da boca sobre o gosto 
confuso. Também o amor se coloca às portas 
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu 
poder estrangeiro.

Aniquilar os frutos para saber, contra 
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua 
solidão — é devotar-se, 
esgotar a amada, para ver como o amor 
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites 
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima 
a eternidade, ou que o gosto 
revela os ritmos diuturnos, os segredos 
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo 
por uma ideia, onde um pensamento 
faz a vez da língua.
— É com as vozes que o silêncio ganha.

In Lugar, In Ofício Cantante, Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 171-172.

ELIZABETH BLAYLOCK


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