terça-feira, 10 de setembro de 2013

Adonis

CELEBRAÇÃO DE BEIRUTE, 1982.
O tempo avança,
na mão um cajado de ossos de corpos.

A lâmina da insônia
marca o pescoço da noite.

Crânios – uns servem sangue
outros se embriagam e deliram.

O fogo se suja?
o vento se infla?

Fumaça é nuvens.
Nuvens tem forma de cabeças.

Letras caídas
são impressas dispersas no chão
- pedaços de corpos.

Hoje o horizonte recomendou a seu filho
o vento que não saísse.

Como não se cansam as pedras do caminho?

Nem mesmo o sol consegue
iluminar este corpo que sangra sombra.

Dias cobertos de pó
tem feições de velhos.

Mariposas queimam
Subindo a escada do sono.

A cinza, princesa,
toma assento e recebe as honras.

O míssil, rei,
arrasta a cauda
sobre os corpos dos súditos.

O sol está prestes a dizer
à luz: ofusca meus olhos.

Será a vida um erro
que a matança corrige?

Onde está a cova aberta para acolher as lágrimas?
E o buraco que acolherá a alma?

A coisa elimina a coisa.

Não terá outro seio
este céu?

Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?
Está sempre lendo seu amor.

O dia tem medo do dia
e a noite se esconde da noite.

Agradeço
ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,
ao intervalo entre uma bomba e outra,
ao piso que sempre aguenta meus passos,
agradeço às pedras que ensinam a paciência.

Apagou-se a luz.
Vou acender a estrela dos meus sonhos.

Leva-me, amor,
e me mantém trancado.


ADONIS [poemas], São Paulo, Companhia das Letras, 2012, seleção e tradução do árabe Michel Sleiman, pp. 175-178.



CELEBRAÇÃO DA INFÂNCIA
Lembro a loucura
apoiando-se, pela primeira vez, no travesseiro do juízo:
eu falando com meu corpo.

Meu corpo era um pesamento
que eu escrevia em vermelho:
o vermelho era o mais belo assento do sol
e todas as outras cores rezavam
em cima de um tapete vermelho.

A noite era outro lampião.

Em cada galho havia um braço:
carta carregada pelo espaço
confirmada pelo corpo do vento.

O sol insistia, nesses tempos,
se vestia de bruma
em nossos encontros:
era reprimenda da luz?

Ah meus dias idos...
caminhavam sonâmbulos
e eu apoiado em seus ombros.

O amor e o sonho são parênteses
onde interponho o meu corpo
e nisso conheço o mundo.

Muitas vezes
vi o vento voar com pés de erva
vi o caminho dançar com pés de vento.

Meus desejos são rosas
manchadas por meus dias.

Cedo me feri
cedo soube
que as feridas me criaram.

Não paro de andar atrás da criança
que não para de andar dentro de mim.
Agora ela para no topo de uma escada de luz
à procura de um canto para descansar
e de novo ler o rosto da noite.

Se a lua fosse uma casa
meus pés recusavam cruzar sua soleira:
eu seria tomado pela poeira
que me traz o vento das estações.

Caminho
ponho uma mão no ar
e a outra nas tranças que imagino.

A estrela é também uma pedrinha
no campo astral.

Só quem se misturou com o horizonte
pode abrir um caminho.

A lua, uma velha...
seu assento é a noite, seu cajado é a luz.

O que direi àquele meu corpo
que deixei entre as ruínas da casa onde nasci?
Não. Só poderão contar minha infância
as estrelas que cintilam em cima daquela casa
e pontilham com seus passos as direções da noite.

Minha infância ainda
nasce entre as mãos de uma luz
cujo nome desconheço e me dá nome.

Aquele rio.
Fazia dele um espelho
para perguntar-lhe sobre suas tristezas,
das tristezas fazia chuva
para imitar as nuvens.

Pequena aldeia tua infância
e apesar disto
não ultrapassarás suas fronteiras
por mais que te afaste a viagem.

Seus dias são lagos
suas lembranças corpos flutuantes.

Tu que caíste das alturas
nas montanhas do passado
como poderás subi-las
de novo?

Tempo: porta trancada
tento não consigo abri-la.
Meu encantamento está cansado
meus amuletos, dormentes.

Nasci numa aldeia
pequena, reclusa, como o útero
e ainda não saí dela.
Meu amor vai pelo oceano
não pelas praias.

Id. Ibid, pp. 179-183.







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