segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Murilo Mendes

Ideia Fortíssima
Uma ideia fortíssima entre todas menos uma 
Habita meu cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.
Ideia que me acompanha 
De uma a outra lua,
De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,
Que me arranca do tempo e sobrevoa a história,
Que me separa de mim mesmo,
Que me corta em dois como o gládio divino.
Uma idéia que anula as paisagens exteriores,
Que me provoca terror e febre,
Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis,
Uma idéia que verruma todos os poros do meu corpo 
E só não se torna o grande cáustico 
Porque é um alívio diante da ideia muito mais forte e violenta de
[Deus.

Companheira
Companheira, dou-te as sombras que me acompanham, 
Todas as sombras criadas pelos vivos.
Companheira, dou-te a alegria
Do que nada tem a esperar do esforço humano.
Dou-te a cantiga do asilado,
O suspiro do menino que olha em vão 
O velocípede do menino vizinho.
Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio 
Em épocas muito remotas.
Companheira,
Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunhão. 
Dou-te o desconsolo do que está sendo destruído 
Pelos crimes que não cometeu,
Pelos crimes de outros em época distante.

Pastoral
Traze a sandália e o bordão para passearmos no campo sereno. 
Somos contemporâneos de raças extintas,
Viemos de torres golpeadas e de hóstias profanadas.
Até que desçamos para os rios invisíveis 
Convém dançar entre os humanos, comer o pão e o mel.
Os imortais nos aguardam nas esferas da música:
Muitos pássaros, muitas luas viajantes têm nostalgia de nós. 
Esquadrilhas de mitos são enviadas para nos protegerem. 
Hospedamos companheiros imprevistos,
O Máscara de Ferro, Nosferatu,
Ou então a Órfã do Castelo Negro.
As fontes esperam nosso sinal para murmurarem,
E os germes da peste se contêm ante a nossa benção.
Paz aos corpos insaciados de amor, aos membros genitais em delírio:

Suspendei de novo no azul a gaiola dos anjos,
Voltem de novo os lírios do vale em lugar dos fuzis.

In Metamorfoses, Poesia Completa e Prosa,  Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1994, pp. 316-317.


ISMAEL NERY

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