terça-feira, 17 de setembro de 2013

Stefan Zweig

EXCERTO DE “O MUNDO QUE EU VI”

Stefan Zweig e Rilke em Paris

De todos esses poetas talvez nenhum haja vivido mais modesta, misteriosa e invisivelmente do que Rilke. Mas sua solidão não era voluntária, forçada ou artificialmente sacerdotal, não era como a de Stefan George na Alemanha; a tranquilidade, por assim dizer, surgia em torno dele, onde quer que ele se achasse. Porque ele fugia a todo ruído e mesmo à sua própria fama — essa “soma de todas as desinteligências que se reúnem em torno de um nome”, como certa vez disse ele de maneira tão elegante – a onda da curiosidade, que em vão se lançava contra ele, só molhava o seu nome, e nunca a sua  pessoa. Era difícil encontrar Rilke. Ele não tinha casa, endereço, onde pudesse ser procurado, não tinha lar, morada fixa, emprego. Estava sempre a viajar pelo mundo, e ninguém, nem mesmo ele próprio, sabia de antemão para onde iria dirigir-se. Para sua alma extremamente sensível toda resolução firme, todo plano e todo aviso já eram incômodos. Por isso só casualmente era possível encontrá-lo. Alguém se achava numa galeria italiana e percebia, sem saber ao certo de quem vinha, um leve e afável sorriso. Só então reconhecia os olhos azuis de Rilke, que quando olhavam para alguém, com sua luz interior lhe animavam os traços fisionômicos, que verdadeiramente nada tinham que chamasse a atenção. Mas precisamente esse não ter nada que chamasse a atenção era o íntimo segredo da sua personalidade. É possível que milhares de pessoas tenham passado por esse jovem de bigode louro e caído e de formas de rosto um pouco eslavas e que não eram dignas de nota por nenhum traço, sem suspeitarem ser ele um poeta e um dos maiores do nosso século. O que ele tinha de especial só se revelava no trato mais íntimo: a extraordinária reserva do seu temperamento. Rilke tinha uma maneira suave e indescritível de aproximar-se, de falar. Quando entrava numa sala onde estavam reunidas várias pessoas fazia-o de modo tão silencioso que quase ninguém notava a sua chegada. Ficava então sentado a escutar, sem querer erguia às vezes a fronte, logo que alguma coisa parecia interessá-lo, e quando falava, fazia-o sempre sem qualquer afetação e sem ênfase. Narrava com a naturalidade, singeleza e carinho com que uma mãe narra ao filho um conto; era admirável ouvi-lo e perceber como ele tornava claro e atraente mesmo o assunto menos interessante. Mas, logo que notava que num grande grupo de pessoas se tornava o objeto da atenção geral, recolhia-se ao seu silêncio e limitava-se a escutar. Todo movimento, todo gesto seu tinha essa suavidade; mesmo quando ria, fazia-o com um tom apenas perceptível. A suavidade era para ele uma necessidade, nada podia perturbá-lo tanto quanto o barulho e, no domínio do sentimento, qualquer veemência. “Essas pessoas que cospem os seus sentimentos como sangue, esgotam-me", disse-me ele certa vez, “por isso russos, já só os suporto como licores, em quantidades bem pequenas". Não menos do que serenidade no proceder eram para ele necessidades absolutamente físicas a ordem, o asseio e o sossego; andar num bonde muito cheio e estar sentado num local barulhento perturbavam-no por algumas horas. Não suportava tudo o que é vulgar e, embora vivesse com recursos parcos, seu vestuário mostrava sempre o máximo esmero, asseio e gosto. Seu vestuário era uma obra prima bem analisada e bem imaginada, de discrição, e apesar disso, acompanhada de uma nota insignificante,  inteiramente pessoal, um pequeno acessório no qual ele tinha um prazer secreto, por exemplo, uma delgada pulseira de prata. O seu senso estético para perfeição e simetria ia até as coisas mais íntimas, mais individuais. Vi-o uma vez em sua morada arrumar a mala para viajar. Com razão foi o meu auxílio recusado, por ser julgado incompetente. A sua arrumação parecia uma colocação de mosaicos, cada peça era posta, quase carinhosamente no espaço cuidadosamente reservado; senti que teria sido um crime perturbar com o meu auxílio essa arrumação tão perfeita. Esse seu senso estético instintivo acompanhava-o até o detalhe mais acessório; escrevia originais mui cuidadosamente no mais bonito papel, com sua bela letra arredondada, deixando entre as linhas distâncias iguais; mesmo para a carta menos importante usava papel seleto, e sua bela escrita regular, limpa arredondada chegava exatamente até a margem. Nunca Rilke deixava sair de suas mãos alguma coisa que não estivesse inteiramente perfeita.       ;
Essa suavidade e concentração que o caracterizavam, não deixavam de exercer influência sobre toda pessoa que dele se aproximasse. Imaginar Rilke impetuoso era tão impossível quanto existir uma pessoa que na presença dele, pela vibração que emanava de sua calma, não perdesse toda exaltação e arrogância, pois sua reserva atuava como uma força que continuava a influir misteriosamente, uma força moral e educadora. Após toda longa conversa com ele uma pessoa se tornava incapaz  por horas ou mesmo por dias, de qualquer vulgaridade. Sem dúvida, por outro lado, essa sua constante reserva, esse nunca querer dar-se inteiramente, punha logo uma barreira que impedia toda cordialidade; creio que só poucos indivíduos se podem gabar de terem sido «amigos» de Rilke. Nos seis volumes de suas cartas quase nunca se vê Rilke tratar alguém por amigo, e parece que ele, desde seus tempos escolares, não concedeu a ninguém o tu fraternal e íntimo. Sua extraordinária sensibilidade não suportava que alguém ou alguma coisa se aproximassem muito dele, e em especial tudo o que era acentuadamente masculino, provocava nele um mal-estar absolutamente físico. Com as mulheres conversava com mais facilidade. Gostava de escrever-lhes, escrevia-lhes muito e mostrava-se mais desembaraçado em sua presença. Talvez fosse a ausência do caráter gutural em suas vozes que lhe agradasse, pois as vozes desagradáveis o faziam sofrer. Vejo-o ainda diante de mim em conversa com um grande aristocrata; durante todo o tempo manteve-se curvado e nem sequer levantou uma só vez os olhos, para que eles não revelassem quanto o fazia sofrer esse falseto desagradável. Mas como era bom ver Rilke junto de uma pessoa de quem ele gostava! Então se sentia sua bondade íntima, embora fosse ela parca em palavras e sentia-se a sua bondade interior como uma irradiação aquecedora, benéfica, que penetrava até as profundezas da alma.
Apesar de tímido e retraído, Rilke em Paris, nesta cidade que expande o coração, procedia com muito mais franqueza, talvez porque ali a sua obra e o seu nome ainda não eram conhecidos e ele, como anônimo, sempre se sentia mais  desembaraçado, mais livre e mais feliz. Visitei-o ali em dois quartos de aluguel; ambos eram simples e não tinham ornatos e, apesar disso haviam adquirido imediatamente estilo e tranquilidade graças ao seu senso estético. Ele jamais poderia morar numa casa grande, com vizinhos barulhentos; preferia uma casa velha, mesmo que fosse menos confortável, mas em que pudesse sentir-se bem, e, onde quer que fosse residir, sabia preparar imediatamente o interior da sua morada mediante habilidade no arranjo dos objetos, de acordo com a sua índole. Havia sempre só muito poucos objetos em torno dele, mas sempre havia flores num vaso ou numa floreira, flores talvez oferecidas por mulheres ou talvez carinhosamente levadas por ele próprio para casa. Viam-se livros em estantes presas à parede, bem encadernados ou cuidadosamente encapados, pois gostava de livros como de animais.  Sobre a secretária as canetas e os lápis achavam-se enfileirados, as folhas de papel em branco bem arrumadas; um ícone russo, um crucifixo que o acompanhavam, creio, em todas suas viagens, davam ao seu gabinete de trabalho um caráter ligeiramente religioso, embora seu espírito não estivesse preso a nenhum determinado dogma. Sentia-se que todo pormenor fora escolhido com cuidado e era mantido com carinho.  Se alguém lhe emprestava um livro que ele não conhecia, ele o devolvia envolto num papel de seda, e o embrulho era feito com muito esmero e atado uma fita de cor, como se fosse um presente de festas.  Lembro-me ainda de ele ter levado ao meu quarto uma dádiva preciosa um manuscrito da “Canção do amor e da morte» e hoje ainda conservo a fita que o circundava. Mas o que havia de mais encantador era passear com Rilke em Paris, pois isso era ver com outros olhos a coisa mais insignificante; ele notava toda minúcia e gostava de pronunciar em voz alta  mesmo os nomes das tabuletas das firmas se eles pareciam soar ritmicamente; conhecer a cidade de Paris até seus últimos cantos e recantos era para ele uma paixão, quase a única que nele notei. Certa vez em que nos encontramos em casa de amigos comuns a ambos, narrei-lhe que na véspera por acaso fora até a velha "Barrière", onde, no cemitério de Picpus haviam sido sepultadas as últimas vítimas da guilhotina, entre elas André Chénier; descrevi-lhe esse pequeno comovente campo com suas sepulturas espalhadas, as quais o forasteiro raramente vê, e contei-lhe que, no regresso, em uma das ruas vira através dum portão um convento com uma espécie de  beguina que calmamente, sem falar, fazia girar, como  num sonho piedoso, o rosário. Foi uma das poucas vezes em que vi quase impaciente esse homem tão suave, tão moderado: ele disse que tinha de ver a sepultara de André Chenier e o convento e perguntou-me se eu queria levá-lo lá. Fomos logo no dia seguinte. Ele ficou numa espécie de imobilidade extática diante desse eremitério solitário e o qualificou de «o mais lírico de Paris». Mas na volta viu que o portão do convento estava fechado. Pude então verificar a sua paciência, que ele na vida não dominava menos da que em sua obra. «Esperemos pelo acaso», disse ele e com a cabeça levemente abaixada postou-se de modo a poder olhar através do portão se ele se abrisse. Esperamos talvez vinte minutos. Uma religiosa que então ia chegando ao convento,  tocou a campainha. «Agora», disse ele baixinho e nervoso. Mas a religiosa percebera que ele espreitava — eu já disse que nele tudo se sentia de longe pela atmosfera — aproximou-se e perguntou-lhe se estava à espera de alguém. Ele sorriu para ela com aquele seu sorriso terno, que imediatamente despertava confiança, e disse francamente que gostaria de ver o convento. A religiosa, sorrindo, disse que sentia muito, mas não podia deixá-lo entrar. Todavia o aconselhou a dirigir-se para a casinha do jardineiro, que ficava perto e de cujo andar superior teria através da janela uma boa vista. E assim conseguiu ele isso, como tantas outras coisas; várias vezes cruzaram-se os nossos caminhos, mas sempre que penso em Rilke vejo-o em Paris, cuja hora mais triste ele não teve o desgosto de presenciar.

[In O Mundo que eu vi, trad de Odilon Gallotti, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1942, pp. 160-166].





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