[...] O modo que tem um poeta de extrair do seu
trabalho passado novas iluminações para a sua consciência, é parecido com o de Münchhausen para alcançar a lua: cortando a corda
por baixo de si para a alongar por cima.
A pura poesia é hieroglífica: só decifrável em termos de destino. Durante anos tornar extáticos à
beleza dos gansos, dos archeiros, dos deuses com cabeça de cão ou de milhafres,
sem suspeitar sequer da sua fatal disposição. Quantas vezes não repeti para mim mesma certos versos ou versículos: «Ó cidade,
eu escrevi-te nas minhas palmas das mãos», «This day I breathed first, time is
come round...», «O estar morto não nos dá o sossego». Mas em torno da sua
posição secreta, enquanto a minha própria sorte não me deu a sua chave, corri
eu cegamente: como que em volta de uma coluna historiada de que fosse descobrindo
só uma figura de cada vez: o escriba, a serpente, o olho.
Poesia hieroglífica e beleza: inseparáveis e independentes. Sentir a justiça de um texto
muito antes de ter compreendido o seu significado, graças àquele puro timbre
que pertence apenas ao estilo mais nobre: o qual por sua vez nasce da justiça.
«A mente minha trespassada e roubada / pelos ladrões meus pensamentos / que me
prometeram o tempo e não esperaram...».
Tal como na
natureza, que só é bela por necessidade real, também na arte a beleza é um
suplemento: é o fruto inevitável da necessidade ideal. [...]
[In Os Imperdoáveis, tradução de José Colaço Barreiros, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 151-152].
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