CANTO DA MORTE DE ABEL
Morto jaz na relva Abel:
fugiu seu irmão Caim.
Um pássaro aproxima-se, mergulha o bico no sangue,
leva um
susto e sai voando.
Foge o pássaro pelo mundo inteiro,
molhado o voo,
estridulante a voz,
carpindo o seu lamento interminável:
sobre o
formoso Abel e a dor da sua morte,
sobre o feio Caim e seu mortal pecado,
sobre
seus próprios dias juvenis.
Logo lhe atira Caim ao coração sua flecha:
e logo há de
levar disputa e guerra e morte
a todas as cabanas e cidades,
fará inimigos para
assassiná-los,
a eles e a si mesmo em desespero odiando,
a eles e a si mesmo
por todos os becos
caçando torturado até à próxima Noite Universal,
até de si
por fim vomitar-se Caim.
Foge o pássaro: do seu bico ensanguentado
um lamento de
morte faz-se ouvir cobrindo o mundo
[inteiro.
Caim o escuta, o morto Abel o escuta,
mil o escutam sob o toldo celeste,
dez mil e mais não o escutam, porém,
sobre a morte de Abel não querem saber nada,
nada sobre Caim e o peso em seu coração,
nada do sangue a jorrar de tantas feridas,
nada da guerra
que estava aí ainda ontem
e da qual sabem agora lendo romances.
Para esses todos, alegres e satisfeitos,
fortes e brutos,
Caim e Abel, tristeza e morte, não existem:
louvam a guerra
como um tempo formidável.
E quando passa voando o pássaro lamentoso
dizem que é agourento e pessimista,
sentem-se fortes e invictos,
e apedrejam o pássaro
até fazê-lo calar e sumir,
ou tocam música para não mais o ouvirem
porque a voz triste dele os incomoda.
O pássaro com suas pequeninas
gotas de sangue no bico, voa de um a outro lugar
e o seu pranto por Abel não pára de ressoar.
In Andares, Antologia Poética, tr. Geir Campos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 157-158.
Bartolomeo Manfredi |
Nenhum comentário:
Postar um comentário