sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Hermann Hesse

CANTO DA MORTE DE ABEL
Morto jaz na relva Abel: 
fugiu seu irmão Caim.
Um pássaro aproxima-se, mergulha o bico no sangue, 
leva um susto e sai voando.

Foge o pássaro pelo mundo inteiro, 
molhado o voo, estridulante a voz, 
carpindo o seu lamento interminável: 
sobre o formoso Abel e a dor da sua morte, 
sobre o feio Caim e seu mortal pecado, 
sobre seus próprios dias juvenis.
Logo lhe atira Caim ao coração sua flecha: 
e logo há de levar disputa e guerra e morte 
a todas as cabanas e cidades, 
fará inimigos para assassiná-los, 
a eles e a si mesmo em desespero odiando, 
a eles e a si mesmo por todos os becos 
caçando torturado até à próxima Noite Universal, 
até de si por fim vomitar-se Caim.

Foge o pássaro: do seu bico ensanguentado 
um lamento de morte faz-se ouvir cobrindo o mundo
[inteiro.
Caim o escuta, o morto Abel o escuta,
mil o escutam sob o toldo celeste,
dez mil e mais não o escutam, porém,
sobre a morte de Abel não querem saber nada,

nada sobre Caim e o peso em seu coração,
nada do sangue a jorrar de tantas feridas, 
nada da guerra que estava aí ainda ontem 
e da qual sabem agora lendo romances.
Para esses todos, alegres e satisfeitos, 
fortes e brutos,
Caim e Abel, tristeza e morte, não existem:
louvam a guerra como um tempo formidável.

E quando passa voando o pássaro lamentoso
dizem que é agourento e pessimista,
sentem-se fortes e invictos,
e apedrejam o pássaro
até fazê-lo calar e sumir,
ou tocam música para não mais o ouvirem
porque a voz triste dele os incomoda.

O pássaro com suas pequeninas
gotas de sangue no bico, voa de um a outro lugar
e o seu pranto por Abel não pára de ressoar.

In Andares, Antologia Poética, tr. Geir Campos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 157-158.

Bartolomeo Manfredi


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