38. DE TSVÉTAÏEVA PARA RILKE
Saint-Gilles-sur-Vie, 2 de agosto de 1926
(...)
Quando um de nós sonha em
conjunto — é quando nos encontramos.
Rainer, se eu quiser ir até junto
de ti, é devido também ao meu novo eu, que só conseguiu nascer contigo, em ti.
E, por isso, Rainer («Rainer»: o leitmotiv da minha carta), não me queiras,
sou eu a má, quero dormir contigo — adormecer e dormir contigo. Esta expressão
popular, como é verdadeira, profunda, sem equívocos, como diz bem aquilo que
diz. Simplesmente dormir. Nada mais. Ou seja: aconchegar a minha cabeça no teu
ombro, passar o braço pelo teu ombro direito — nada mais. Ou seja: saber, no
sonho mais profundo, que és tu. E ainda: como bate o teu coração. E — beijar o
teu coração.
Às vezes digo a mim própria:
deves explorar o acaso de seres ainda (pelo menos!) um corpo. Qualquer dia
ficarei sem braços. E ainda: o que vai parecer uma confissão: vangloriar-se das
suas dores! Quem poderá falar dos seus sofrimentos sem ficar entusiasmado, feliz?!)
— Não é necessário que tenha o ar duma confissão: os corpos aborrecem-se de
mim. Adivinham qualquer coisa e não acreditam em mim (não acreditam no meu)
ainda que eu faça o que toda a gente faz. De
forma demasiado... desinteressada, talvez demasiado... benevolente. Demasiado
confiante, também. São as pessoas de antigamente (os selvagens), ignorantes de
usos e leis, que são confiantes. Os de agora não têm confiança! São coisas que
já não têm lugar no amor, o amor não entende e não sente nada a não ser a si
próprio, de forma muito localizada e pontual, e isso, eu não consigo
contrariar. E — a grande compaixão, quem sabe donde virá, a bondade infinita e
— a mentira.
Sempre me senti mais velha. Os jogos infantis demasiado sérios, eu não o
bastante.
Sempre entendi a boca como um mundo: abóbada celeste, caverna, garganta,
abismo. Sempre traduzi o corpo em alma (desincarnado!), e de tal maneira
magnificado o amor «físico» — para poder amá-lo — que dele, de repente, não restava mais nada. Ao abismar-me nele, afundava-o.
Ao afundar-me nele, afastava-o. E de tudo não ficava mais nada senão eu: uma alma
(é o meu nome, daí a admiração perante o meu dia!)
O amor odeia o poeta. O amor não quer ser magnificado (sendo por si
bastante magnífico!), toma-se por um absoluto, o único. E não confia em nós.
Sabe, no mais profundo de si próprio, que não é magnífico (daí a sua
tirania!), sabe que toda a magnificência é — alma, e onde a alma começa, o
corpo acaba. Puro ciúme, Rainer, o mais puro. Como o da alma perante o corpo.
Mas eu sou sempre ciumenta do corpo: gratificado por louvores tais! O pequeno
episódio de Paolo e Francesca. — Pobre Dante! — Quem hoje pensa ainda em Dante
ou em Beatriz? É da comédia humana que eu sou cimenta. A alma não
é nunca amada como o corpo, ou melhor: louvada. Ama-se o corpo de todos esses
milhares de almas. Quem alguma vez se fez condenar por uma alma? E haverá
alguém que quisesse — impossível: amar uma alma até à condenação —
isso é já ser um anjo. Nós somos frustrados pela totalidade do inferno: (...
demasiado puro — provoca um vento de desdém!)
Por que é que eu te
falo nisto? Pela inquietação talvez, de que não vejas em mim nada a não ser uma apaixonada comum (paixão —
servidão). «Amo-te e quero dormir contigo», um tal concisão não permite a
amizade. Mas digo-o doutra maneira,
quase em estado de sonolência, firme no meu sono. E a coisa não me soa como
paixão. Se me apertasses contra ti, apertarias os lugares mais desertos. Tudo o
que não dorme jamais quereria encontrar o seu sono nos teus braços. Até ao
fundo da alma (da garganta) — assim seria o meu beijo. (Não um incêndio: um
abismo.)
Je ne plaide pas ma
cause, je plaide la cause du plus absolu
des baisers."
________________________________
Tu andas sempre em
viagem, não vives em lugar certo, e encontras russos que não são eu. Ouve-me,
uma vez por todas: na Raineria, só eu represento a Rússia.
Rainer, no fundo,
quem és tu? Não és alemão — ainda que sejas a Alemanha inteira! Não és da
Boêmia — ainda que tenhas nascido lá (N.B.! nascido num país que ainda não
existia) não és austríaco, porque a Áustria era e tu — passas a ser! Isto não é
magnífico? Tu — sem país. «O maior poeta checoslovaco», escrevem os jornais
parisienses. Eis-te portanto eslovaco,
finalmente, Rainer. O que não deixa de ser engraçado.
Rainer, a noite
cai, e eu amo-te. Um comboio uiva. Os comboios são lobos, os lobos são a
Rússia. Não é um comboio — é a Rússia inteira que uiva perto de
ti. Não te zangues comigo, e zangado ou não, esta noite dormirei contigo. Uma
falha na escuridão, porque há estrelas, e eu fecho a janela. (Quando penso em
ti e em mim, penso numa janela, não numa cama.) Com os olhos grandes, abertos,
por que lá fora, está mais escuro que cá dentro. A cama é um barco, partimos em
viagem.
... E um dia nunca mais se viu.
O pequeno barco sem velas,
Cansado dos malditos oceanos
Vogando no país das
estrelas —
Tinha ganho o paraíso...
(Canção infantil de Lausanne)
Não precisas de
responder — a não ser ao beijo.
M.
P.-S. A propósito de
ter razão (de estar no seu direito): «A natureza também é não natural» (Goethe), deve ser isso o que tu querias
dizer (natureza: direito) Os déserts lieux são uma prenda de Boris de que te faço
presente.
In Rilke / Pasternak / Tsvétaïeva Correspondência a Três, trad. do francês Armando Silva Carvalho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 268-271
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