terça-feira, 15 de outubro de 2013

Maria Lúcia Dal Farra

V
BÍBLICAS DE SANTA TERESA D’ÁVILA

I
Era uma vez uma mulher 
que foi tocada pelo amor celeste.
O Senhor fez nela o seu piano
— a maneira íntima de deitar as mãos sobre o humano. 

Que forte sopro é este que se infunde em mim?

Com sua vara
Ele arranca água deste ermo 
sulcado em marfim.
Com o polegar no sol 
põe-me dentro da luz — 
sou solista da sua voz.

E porque leio os sinais
na clave bem temperada do corpo,
solfejo freneticamente as esferas.

Ah oratório dos meus pecados!
II
Procuro nas trevas tua voz 
enquanto lanças sobre mim a espada. 
Fustigas no meu corpo tempestades más 
— não reconheço nelas teu espírito.

Por que me abandonaste, ó Senhor, 
se debaixo da tua vindima 
mitiguei tua sede, 
se pelos campos afora 
me abri ao teu agrado?

Apóia em mim tua face 
transborda em mim tua carne 
e
acima do céu ou do inferno 
dá-me o prazer eterno, amém!
III
E o Senhor criou a mulher!
Deu-lhe crina de fogo ondulante 
regiões da mais delicada força 
uivos arrebatados na treva 
coisas de incontida beleza.

Sou um sacrário prenhe de palpitações do espírito 
onde o cálice se reserva para o festim.
E (clara) uma luva está sempre prestes 
a ascender em mim a pomba que enaltece.

Voo de guerra que atravessa as plagas 
do desde baixo até a mais profunda ascese, 
exército urdido na solidão 
para o clarim do dia primevo!

É quando a espada rasga o corpo 
é quando (pelos dons do Senhor) 
me reverto em seu espelho.
Imagem e semelhança.
IV
És tu que tens na mão a minha parte!

Que se alevante então 
a montanha encoberta 
e que os incensos inundem de cheiros 
a entrada das cavernas mais secretas!

Meu peito é o horto da paixão, 
oliveiras no aguardo do vento forte!
Honra esta casa
 — esta lareira — 
sobe a escarpa 
atiça o vulcão!

Dos teus olhos só vem o que é reto!
Por isso te peço:
desce sobre mim o raio piedoso.

Senta-te à mesa, dá-me o teu fruto, 
indica-me (desde a direita) quais as delícias. 
Devolve do teu arbusto a minha seiva!
E dentro da tua mais excelsa indulgência 
faz de mim tua serva — e serventia tua!
V
O Senhor partiu para seu monte 
e as regiões se quedaram desabitadas 
como a solidão mais antiga!

O tempo ruiu-se sobre a manhã...
Nenhuma aragem fina
vem deitar sua mirra sobre este leito de morte!

Onde os cardos para o meu diadema?

[In Livro de Auras, São Paulo, Iluminuras, 1994, pp. 73-77].


O ÊXTASE DE SANTA TERESA - BERNINI
igreja de Santa Maria della Vittoria -  Roma.





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