Séraphine Louis tinha treze anos quando partiu de Arsy, onde pastoreava ovelhas, para trabalhar na casa da condessa de Beaumini, em Paris. Mas Paris não era lugar para Séraphine, ela voltou. Aos dezoito, foi empregada no convento Charité de la Providence, em Clermont. Passou ali vinte anos. Partiu novamente. Foi trabalhar nas casas dos burgueses de Senlis, na casa de Mme. Mong, na casa de M. Chambard. Até que, em 1906, Séraphine com quarenta e dois anos, a Virgem lhe apareceu na catedral Notre-Dame de Senlis.
“Séraphine, você deve pintar!”
Obediente e devota como era, Séraphine começou a pintar. Inventava suas misturas usando Ripolin comprado na drogaria da praça do mercado. Pintava à noite, no seu quarto feito atelier na rua Puits-Tiphaine. Os de Senlis se divertiam com a empregada que pintava quadros. Debochavam da mulher sem instrução, que dizia ter visto a Virgem e pintava salmodiando os cânticos das freiras de Clermont.
Em 1912 apareceu na pequena vila, vindo de Paris, Wilhelm Uhde, um aristocrata alemão. Procurava um retiro não muito longe da cidade das artes e em Senlis encontrou esse lugar. A catedral gótica da vila o seduzia com suas histórias de Deus e de reis. Nessa época, Uhde já colecionava obras de Picasso e enfrentava a desconfiança dos marchands para expor artistas ainda à sombra da história e do mercado, como Henri Rousseau e Marie Laurencin.
Em Senlis, Uhde se instalou num apartamento na praça Lavarande. Todas as manhãs uma mulher que lhe haviam recomendado vinha fazer a faxina. Era Séraphine. A insignificante, insólita Séraphine. Quando Uhde viu pela primeira vez um de seus quadros, uma pequena natureza-morta com maçãs, não se conteve: “Cézanne ficaria feliz de ver essas maçãs”. Sob a vista sarcástica da gente da vila, Uhde encorajava Séraphine a pintar, comprava seus quadros, mostrava-os aos amigos parisienses.
Veio a Primeira Guerra, muitos debandaram de Senlis. Uhde, perseguido, despareceu. Mais de dez anos se passaram até o improvável acontecer. Desta vez, de Chantilly, Uhde vinha para uma exposição de pintura regional na prefeitura de Senlis. Percorrendo a grande sala, no meio de toda aquela arte provinciana, estacou diante de três telas: um ramo de lilás, uma cerejeira, uvas negras e brancas.
Lá estavam as cores da rosácea medieval, as flores semoventes de Séraphine, suas árvores estreladas, águas-vivas, borboletas-cauda-de-andorinha, peixes-mandarins. Três quadros, e lá a inteligência sensível, autodidata, que resolvia na pintura, com seu métier secreto, as questões de cor, equilíbrio e harmonia. Uhde pensou no Cântico de Salomão. Sentiu que badalavam juntos os sinos de Saint-Fraimbault, de Saint-Aignan, de Saint-Hilaire.
Nenhuma palavra sobre Séraphine na imprensa local que noticiava a exposição enquanto os jornais de Paris divulgavam a descoberta evocando a arte do Extremo Oriente. A velha empregada agora abandonava a faxina, pintava de três a quatro telas por semana, tinha de volta seu mecenas e colecionadores na Alemanha, em Londres, em Paris.
A bonança duraria pouco. Era o fim dos anos loucos na França. Começavam a irradiar os maus tempos da grande crise de 1929. Menos de dez anos depois explodia a Segunda Guerra. Uhde já não podia sustentar Séraphine, que, por sua vez, ia submergindo na loucura.
“Ideias de perseguição; alucinações auditivas; alucinações visuais”, assinalou o médico no documento de admissão de Séraphine no asilo de Clermont-de-l’Oise em fevereiro de 1932. Vieram os anos de miséria, alienação e nenhum quadro. A visionária que imaginava um cortejo iluminado no dia da sua morte foi enterrada numa vala comum no ano de 1942. Uhde viveria cinco anos mais.
Aquela pintura inspirada, magnificamente colorida, hoje pertence ao acervo de vários museus da França. Dizem que brilha como se ainda estivesse fresca. Essa pintura cuja técnica vem de uma mistura indecifrável. Algo que contém Ripolin, às vezes verniz, e o óleo santo da Notre-Dame da pequena vila de Senlis.
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