POESIA
Também não gosto: há coisas mais importantes que toda essa baboseira.
Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a gente
acaba descobrindo
nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.
Mãos que agarram, olhos
que se dilatam, cabeleira que se eriça
quando preciso, são coisas importantes, não porque se
lhes pode impor pomposa interpretação mas por serem
úteis. Quando
se tornam tão derivativas que ficam ininteligíveis,
o mesmo se pode dizer de
todos nós, pois
não admiramos aquilo que
somos incapazes de compreender: o
morcego
pendurado de ponta-cabeça ou em busca de algum
alimento, elefantes em marcha, um cavalo selvagem a se
espojar, um lobo
infatigável embaixo
de uma árvore, o crítico impassível a crispar a pele como um
cavalo mordido
por pulga, o fã do
beisebol, o
estatístico —
nem é válido
ter preconceito contra “documentos comerciais e
livros didáticos” *; todos esses fenômenos são importantes.
Contudo, a gente deve
fazer uma
distinção: se um semipoeta os realça à força, o resultado
não é poesia,
nem, enquanto nossos poetas não forem “literalistas
da imaginação” ** — acima
da insolência e da trivialidade — e não
apresentarem
para inspeção “jardins imaginários com sapos de verdade”,
teremos acesso a
ela. Até lá, se exigir, por um lado,
a matéria-prima da poesia
em
toda a sua primariedade e
aquilo que é, por outro lado,
genuíno, então você tem interesse por poesia.
__________________________________________
* Diário de Tolstói: “Jamais serei
capaz de compreender onde fica a fronteira entre prosa e poesia. Essa questão é
discutida em manuais de estilo, mas não alcanço a resposta. Poesia é verso;
prosa não é verso. Ou então poesia é tudo exceto documentos comerciais e livros
didáticos".
** Literalistas da imaginação. Yeats,
Ideas of good and evil (A. H. Bullen, 1903), p. 182. “A
limitação de sua visão derivava da própria intensidade de sua visão; era um
realista da imaginação demasiado literal, assim como outros o são da natureza;
e, como estava convencido de que as figuras vistas pelos olhos da mente, quando
a inspiração as exaltava, eram ‘existências eternas’, símbolos das essências
divinas, repudiava toda graça de estilo que pudesse obscurecer
suas características.”
[In Poemas, seleção João Moura Jr.; tradução e posfácio José Antonio Arantes. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, pp. 168-169].
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