sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ernesto Sabato

BRUNO QUERIA IR-SE,

sentia-se incômodo, o via desalentado, além de escrever centenas de páginas ainda era necessário explicar quem era, pois afinal se tratava disso. E agora o via naquele canto, tirando os óculos e passando a mão na testa, com seu gesto de cansaço e desalento, enquanto aqueles rapazes discutiam entre si. Porque nem eles mesmos estavam de acordo, e constituíam uma absurda mistura (que fazia ali, por exemplo, Marcelo, e seu companheiro soturno e silencioso? Em virtude de que disparatada combinação também se encontravam ali? ). E aquela discórdia, aquela violenta e irônica discórdia, lhe lembrava o signo da tremenda crise, o desmoronamento das doutrinas. Se acusavam entre si como inimigos mortais, e no entanto todos eles per­tenciam ao que chamavam esquerda; mas cada um deles parecia ter motivos para considerar com desconfiança o que estava ao lado ou em frente, como sutil ou aber­tamente vinculado a serviços de informações, à CIA, ao imperialismo. Olhava seus rostos. Quantos mundos diferentes havia atrás daquelas fachadas, quantos seres fun­damentalmente distintos. A Humanidade Futura. Que cânones, que tipos de seres? O Homem Novo. Mas como construí-lo com aquele arrivista hipócrita, com aquele Puch que ali estava a adivinhá-lo, e com alguém como Marcelo? Que atributos, que unha daquele pequeno arrivista da esquerda poderia contribuir à integração desse Homem Novo? Contemplava Marcelo, com sua campeira surrada e suas calças enru­gadas, com aquela presença quase imperceptível que no entanto tanto impressiona­va Sábato. Porque, explicava-lhe Sábato, diante dele se sentia sempre culpado, como em outro tempo lhe ocorrera em relação a Arturo Sánchez Riva; e não porque fosse terrível, mas pelo contrário: por sua bondade, por sua reserva, por sua delicadeza. Não acreditava que sua alma fosse aprazível; quase com certeza era atormentada. Mas seu tormento era recatado, até mesmo cortês. Lhe resultava curioso observar em seu rosto os mesmos traços que no Dr. Carranza Paz, seu nariz ossudo e proemi­nente, sua fronte alta e estreita, aqueles olhos grandes e aveludados, um pouco úmi­dos: um dos cavalheiros do enterro do Conde de Orgaz. Por que então as diferen­ças? Mais uma vez compreendia que pouco significavam os ossos e a carne do rosto. Eram sutilezas, as que produziam as diferenças, às vezes abissais. Mas é que as coisas se diferenciam no que se parecem, já havia descoberto Aristóteles, a parte proustiana daquele gênio múltiplo. E era efetivamente o que aqueles olhos e aquela boca e aquele nariz ossudo, proeminente, tinham de comum, o que revelava o fosso aberto entre pai e filho. Um fosso talvez natural, mas logo aumentado pelos anos. Traços quase invisíveis nos extremos dos olhos, nas pálpebras, nas comissuras dos lábios, na forma de inclinar a cabeça e de recolher as mãos (em Marcelo, com timidez, como pedindo desculpas por tê-las, por não saber onde escondê-las), o que se­parava triste e definitivamente dois seres tão próximos e até mesmo (quase poderia afirmá-lo) tão necessitados um do outro.

In Abadon,  o Exterminador, Tradução de Janer Cristaldo, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1981, p. 101.






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