BRUNO QUERIA IR-SE,
sentia-se incômodo, o via desalentado, além de escrever
centenas de páginas ainda era necessário explicar quem era, pois afinal se
tratava disso. E agora o via naquele canto, tirando os óculos e passando a mão
na testa, com seu gesto de cansaço e desalento, enquanto aqueles rapazes
discutiam entre si. Porque nem eles mesmos estavam de acordo, e
constituíam uma absurda mistura (que fazia ali, por exemplo, Marcelo, e seu
companheiro soturno e silencioso? Em virtude de que disparatada combinação
também se encontravam ali? ). E aquela discórdia, aquela violenta e irônica
discórdia, lhe lembrava o signo da tremenda crise, o desmoronamento das
doutrinas. Se acusavam entre si como inimigos mortais, e no entanto todos eles
pertenciam ao que chamavam esquerda; mas cada um deles parecia ter motivos
para considerar com desconfiança o que estava ao lado ou em frente, como sutil
ou abertamente vinculado a serviços de informações, à CIA, ao imperialismo.
Olhava seus rostos. Quantos mundos diferentes havia atrás daquelas fachadas,
quantos seres fundamentalmente distintos. A Humanidade Futura. Que cânones,
que tipos de seres? O Homem Novo. Mas como construí-lo com aquele arrivista hipócrita, com aquele Puch que ali estava a adivinhá-lo, e
com alguém como Marcelo? Que atributos, que unha daquele pequeno arrivista
da esquerda poderia contribuir à integração desse Homem Novo?
Contemplava Marcelo, com sua campeira surrada e suas
calças enrugadas, com aquela presença quase imperceptível que no entanto tanto
impressionava Sábato. Porque, explicava-lhe Sábato, diante dele se sentia
sempre culpado, como em outro tempo lhe ocorrera em relação a Arturo Sánchez
Riva; e não porque fosse terrível, mas pelo contrário: por sua bondade, por sua
reserva, por sua delicadeza. Não acreditava que sua alma fosse aprazível; quase
com certeza era atormentada. Mas seu tormento era recatado, até mesmo cortês.
Lhe resultava curioso observar em seu rosto os mesmos
traços que no Dr. Carranza Paz, seu nariz ossudo e proeminente, sua fronte
alta e estreita, aqueles olhos grandes e aveludados, um pouco úmidos: um dos
cavalheiros do enterro do Conde de Orgaz. Por que então as diferenças? Mais
uma vez compreendia que pouco significavam os ossos e a carne do rosto. Eram
sutilezas, as que produziam as diferenças, às vezes abissais. Mas é que as
coisas se diferenciam no que se parecem, já havia descoberto Aristóteles, a
parte proustiana daquele gênio múltiplo. E era efetivamente o que aqueles olhos
e aquela boca e aquele nariz ossudo, proeminente, tinham de comum, o que
revelava o fosso aberto entre pai e filho. Um fosso talvez natural, mas logo
aumentado pelos anos. Traços quase invisíveis nos extremos dos olhos, nas
pálpebras, nas comissuras dos lábios, na forma de inclinar a
cabeça e de recolher as mãos (em Marcelo, com timidez, como pedindo desculpas
por tê-las, por não saber onde escondê-las), o que separava triste e definitivamente
dois seres tão próximos e até mesmo (quase poderia afirmá-lo) tão necessitados
um do outro.
In Abadon, o Exterminador, Tradução de Janer Cristaldo, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1981, p. 101.
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