Diante da vila, das casas quase coladas, entre as gentes, sou uma grande porca acinzentada, diante de muitos a quem conheci, sou uma pequena porca ruiva perguntante, rodeando mesas e cantos, focinhando carne e ossatura, tentando chegar perto do macio, do esconso, do branco luzidio do teu osso. Diante de minha mãe, fui apenas pergunta, altanaria, paradoxo, Hillé, diante do pai, foi o segredo, a escuta, a concha. O que é paixão? O que é a sombra? Eu mesmo te pergunto e eu mesmo te respondo: Hillé, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão e esse aberto do teu peito, e também teu deserto. E sombra, Hillé, é nosso passo, nossa desesperançada subida. E para Ehud, Hillé foi apenas uma letra D, primeira letra de Derrelição, doce curva comprimindo uma haste, verticalidade sempre reprimida, cancela, trinco, tosco cadeado. Textos, palavras, e de repente a mãe do Porco-Menino me entupindo a boca de terra, de cascalho, de palha. Engasgo neste abismo, cresci procurando, olhava o olho dos bichos frente ao sol, degraus da velha escada, olhava encostando meu olho naquele olho, e via perguntas boiando naquelas aguaduras, outras desde há muito mortas sedimentando aquele olho, e entrava no corpo do cavalo, do porco, do cachorro, segurava então minha própria cara e chorava.
Que foi, Hillé?
O olho dos bichos, mãe.
Que é que tem o olho dos bichos?
O olho dos bichos é uma pergunta morta.
E depois vi os olhos dos homens,
fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco, e vi um túnel
extenso forrado de penugem, asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens,
um mugido de medos, garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada,
frias, álgidas, vórtices de gentes, os beiços secos, as costelas à mostra, e,
rodeando o vórtice, homens engalanados, fraque e
cartola, de seus peitos duros saíam palavras, Mentira, Engodo, Morte, Hipocrisia,
vi o Porco-Menino estremecendo de gozo vendo o Todo, suas mãozinhas moles reverberavam no cinza oleoso, ele estendia os dedos miúdos para o
alto. Procurava quem? Seu irmão gêmeo, estático, os olhos cegos em direção ao
próprio peito, a cabeça pendida, o corpo perolado, excrescência e
nácar.
(domingo, 17 de outubro de 1993)
* A obscena senhora D. São Paulo, Globo, 2001.
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