Galopando insana pela casa
S.O.S.! Help! Socorro! Aiuto! Ayuda! Aide!
Tô no poço, no bueiro, na cova
ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26
(todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian
Gray o meu é lindo e mais pro “Dorian Gay”, e eu na carne, velhíssima, tristíssima,
paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por
exemplo, que tem uma “anomalia de distribuição de sulcos” segundo meu admirável
professor de biologia, que me fazia decorar tudo
aquilo de anélidas platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas
moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre
casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu
abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou
comprem meus dentes, ao menos para sorrir amarelo), comprem minhas frases (se
as houver) na agonia visceral da despedida, e se eu nada disser comprem o
silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando
insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro,
meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem
comprem! Tô inteirinha à venda, negada!
Estamos todos à venda, os
escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra
onde a palavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só
serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha
rábula, ou se for um guia pra tua melhor trepada.
Mas a verdade é que há este
amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este
porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo a quem chamo de Vivo, também ele
um poeta, que para me arrancar desta noite de sombras e de mitos,
leu para mim, este seu poema, enquanto eu maldizia a mim mesma e a
Deus:
Deixa-me tatear teu hálito
obscuro que estou
de todos os
sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir
que essa ilusão de formas
é
apenas minha inconclusa
maneira de ocultar-te.
Deixa-me (em sigilo)
beirar a secura do teu corpo
— o abismo
de tocar-te.
P. S.: Dialogozinho esotérico à maneira da URV*: Depois disso
ela morreu, é?
“Não sei ao certo. Mas alguém
teve a liberdade de enterrá-la” (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E “Gloomy Sunday” pra vocês
também.
(domingo, 13 de março de 1994)
In Cascos & carícias & outras crônicas, São Paulo, Globo, 2013, pp. 202-203
* Ninguém tem obrigação de lembrar o que foi a URV, né, Sra. Hilst? Pedimos socorro à Wikipédia: Unidade Real de Valor ou URV (sigla pela qual se popularizou) foi a parte escritural da atual moeda corrente do Brasil, cujo curso obrigatório se iniciou em 1º de março de 19941 . Foi um índice que procurou refletir a variação do poder aquisitivo da moeda, servindo apenas como unidade de conta e referência de valores. Teve curso juntamente com o Cruzeiro Real (CR$) até o dia 1º de julho de 1994, quando foi lançada a nova base monetária nacional, o Real (R$).
Instituída pela Medida Provisória nº 434 (posteriormente transformada na Lei nº 8.8882 ), foi parte fundamental do Plano Real, contribuindo positivamente para a mudança de moeda, para a estabilização monetária e econômica, sem medidas de choque como confiscos e congelamentos.
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