O FAZEDOR
Somos o rio que invocaste, Heráclito.
Somos o tempo. Seu intangível curso
Arrasta os leões e as montanhas,
Pranteado
amor, cinzas do deleite,
Insidiosa esperança interminável,
Vastos nomes de impérios que são pó,
Hexâmetros
do grego e do romano,
Lúgubre um mar sob o poder
da aurora,
O sono, em que pregustamos a morte,
As armas e o guerreiro, monumentos,
As duas faces de Jano que se ignoram,
Os labirintos de marfim que urdem
As peças de xadrez no
tabuleiro,
A rubra mão de Macbeth que pode
Ensanguentar os mares, o secreto
Trabalho dos relógios entre as sombras,
Um incessante espelho que se fita
Em
outro espelho, e ninguém para vê-los,
Lâminas aceradas, letra gótica,
Uma barra de enxofre em um armário,
Pesadas badaladas da
insônia,
Auroras e poentes e crepúsculos,
Ecos, ressaca, areia, líquen, sonhos.
Não passo de imagens que o acaso
Vai embaralhando e que
nomeia o tédio.
Com elas, mesmo cego e alquebrado,
Hei de lavrar o verso incorruptível
E (é meu dever) salvar-me.
[In Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 327]
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