sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Adélia Prado

Esta é uma tarde do mês de abril, diferente de seu arquétipo. Chuvoso, parece agosto e sua névoa poei­renta. Ganhei um vaso de monsenhores plantados em seis cores. É quase insuportável a administração do real, a realidade é horrorosa, como disse a Alba. Bem horrorosa, no sentido de formidável também. Pode-se dizer desastre formidável, expliquei isto ao meu pai e a ilustração para ele foi como se tivesse lido a Barsa. Quero parar no miolo desta flor com seu cheiro, à janela de nossa casa, com minha mãe viva, infeliz por eu não gostar de sapatos e não falar ‘você’, já com os peitinhos aflorando. Como doeu para ela tanto excesso. O mais lancinante de sua bo­ca para mim foi: ‘ô trem ordinário’, seu olhar fosforescente. Nunca soube como me trespassou, era um xingo, ele mesmo ordinário, como não amola, vai dormir, vai tomar banho. Foi o tom, a vibração inusitada que me expulsou do amor. Senti-o como os bichos que pressentem catástrofes. Não correra à sua ordem de recolher a roupa do varal e ela enlouqueceu de raiva, estranha como se hoje eu chamasse ‘mulher’ a uma menina de cinco anos. Estou falando de minha mãe? Sou capaz de tantas coisas horríveis. Deus sabe de quem falo e me protege para que eu não diga, me perdoa, me poupa enquanto me castiga. A coragem de ficar alegre depois desta lembrança é agora minha única via de santidade. Sei que Abel me ama, algumas pessoas também têm amor por mim, mas qual mulher me ama? Só uma, uma só, a que entrega o filho a meus cuidados, sabendo que posso esquecê-lo no táxi, deixá-lo com sede e tomar de sua boca três quartos de sua comida. Que­ria ser um soprano do mais extenso fôlego, num tea­tro adequado pra cantar. Descobri, em dias como hoje, de fôlego difícil e desconforto pré-cordial, sou levada a desejos de cantar, cantar muito sem medir volume. Quando o faço, melhoro. Saio-me. O corpo me limita, a pele, a casa, o quarto, a roupa, os ócu­los, o sofrimento de dona Luizinha que não entende eu não comparecer às suas bodas de ouro. É ilusão voar de asa-delta, estamos todos retidos e em culpa, o maior de todos os limites. Só uma coisa não casti­ga, a nudez verdadeira, a que não se vende, porque ninguém compra a desolação, a terra arrasada de nossa impotência. É dramático só termos pelos na cabeça e nos lugares recônditos. Nada posso contra isso. Até o carteiro manda em mim, ‘assina aqui, dona, senão o pacote fica retido no correio’. Sou uma retida. Voo muito nos sonhos. Como fluir e escapar à ferrugem? Dona Luizinha trouxe pessoalmente o convite, escrito a mão, ela e seo Manoel. Falaram do tempo, da horta, da barulheira do bar de mulhe­res ao lado da casa deles, da hérnia dele, da osteoporose dela.  Do ho­mem das cavernas a esta constatação, meu espírito está preso à carne. Voo muito em sonhos. Creio na ressurreição dos mortos, aceito e confesso o absurdo que me salva.

[In Quero minha mãe, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2005, pp. 35-37].

John Singer Sargent

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