Esta é uma tarde do mês de abril, diferente de seu
arquétipo. Chuvoso, parece agosto e sua névoa poeirenta. Ganhei um vaso de
monsenhores plantados em seis cores. É quase insuportável a administração do
real, a realidade é horrorosa, como disse a Alba. Bem horrorosa, no sentido de
formidável também. Pode-se dizer desastre formidável, expliquei isto ao meu pai
e a ilustração para ele foi como se tivesse lido a Barsa. Quero parar no miolo
desta flor com seu cheiro, à janela de nossa casa, com minha mãe viva, infeliz
por eu não gostar de sapatos e não falar ‘você’, já com os peitinhos aflorando.
Como doeu para ela tanto excesso. O mais lancinante de
sua boca para mim foi: ‘ô trem ordinário’, seu olhar fosforescente.
Nunca soube como me trespassou, era um xingo, ele mesmo
ordinário, como não amola, vai dormir, vai tomar banho. Foi o tom, a vibração
inusitada que me expulsou do amor. Senti-o como os bichos que
pressentem catástrofes. Não correra à sua ordem de recolher a roupa do varal e
ela enlouqueceu de raiva, estranha como se hoje eu chamasse ‘mulher’ a uma
menina de cinco anos. Estou falando de minha mãe? Sou capaz de tantas
coisas horríveis. Deus sabe de quem falo e me protege para que eu não diga, me
perdoa, me poupa enquanto me castiga. A coragem de ficar alegre depois desta
lembrança é agora minha única via de santidade. Sei que Abel me ama, algumas
pessoas também têm amor por mim, mas
qual mulher me ama? Só uma, uma só, a que entrega o filho a meus cuidados,
sabendo que posso esquecê-lo no táxi, deixá-lo com sede e tomar de sua boca três quartos
de sua comida. Queria ser um soprano do mais extenso fôlego, num teatro
adequado pra cantar. Descobri, em dias como hoje, de fôlego difícil e
desconforto pré-cordial, sou levada a desejos de cantar, cantar muito sem medir
volume. Quando o faço, melhoro. Saio-me. O corpo me limita, a pele, a casa, o
quarto, a roupa, os óculos, o sofrimento de dona Luizinha que não entende eu
não comparecer às suas bodas de ouro. É ilusão voar de asa-delta, estamos todos
retidos e em culpa, o maior de todos os limites. Só uma coisa não castiga, a
nudez verdadeira, a que não se vende, porque ninguém compra a desolação, a
terra arrasada de nossa impotência. É dramático só termos pelos na cabeça e nos
lugares recônditos. Nada posso contra isso. Até o carteiro manda em mim, ‘assina aqui, dona, senão o pacote fica retido
no correio’. Sou uma retida. Voo muito
nos sonhos. Como fluir e escapar à ferrugem? Dona Luizinha trouxe pessoalmente o
convite, escrito a mão, ela e seo Manoel. Falaram do tempo, da horta, da
barulheira do bar de mulheres ao lado da casa deles, da hérnia dele, da
osteoporose dela. Do homem das cavernas a
esta constatação, meu espírito está preso à carne. Voo muito em sonhos. Creio
na ressurreição dos mortos, aceito e confesso o absurdo que me salva.
[In Quero minha mãe, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2005, pp. 35-37].
John Singer Sargent |
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