domingo, 26 de janeiro de 2014

Mariana Ianelli

AS VIDAS DE MATILDE
Matilde vivia ali desde sempre. Eu assim imaginava. Que antes de Matilde era um tempo tão remoto como antes de os céus se terem separado das águas. Desde que existia a casa da avó, Matilde existia. Cozinhava. Preparava alcachofras, minestrones e um capeletti que vinha numa travessa larga, nos almoços de domingo, quando a família se fartava de tagarelar até bem depois dos pratos limpos e da travessa esvaziada. Matilde alimentava a casa, justamente ela que era tão miúda, as mãos enrugadas de lavar batatas, cheirando à salsa.

A idade de Matilde? A idade de Salé, de Héber, de Faleg, de qualquer um da geração dos velhos patriarcas. Não que fosse realmente velha, apenas que já tendo visto muitas coisas nesta vida devia ainda ter vida para ver duas vezes mais. Tinha uma pele muito fina, muito branca, e a voz miudinha como ela. Não era bonita, Matilde. Era sozinha. Tão sozinha que nunca deixava a casa. Tinha seu quarto num anexo onde se fechava durante a noite e nos feriados. Era de falar pouco, mas falava comigo, isso eu lembro, a risada que ela ria para dentro, o rosto todo afogueado.

Lembro de Matilde empoleirada num banco da cozinha roendo as unhas, de Matilde dando nacos de mamão para as tartarugas, ou de repente Matilde desvairada, batendo gavetas, ensaiando o fim do mundo num estrondo de cumbucas, panelas, colheres e facas. Porque ela também tinha seus rompantes, suas esquisitices, dizia que não era deste planeta, que por isso não mostrava seus pés nem se fosse obrigada.

O susto que foi para mim quando ela resolveu ir embora da casa. Os netos todos crescidos, os almoços de domingo rareando, foi embora sem levar nada, que não tinha mesmo nada para levar. Então que descobrimos outras vidas de Matilde. Que ela sofria da síndrome de Diógenes, aquela doença que faz a pessoa acumular todo tipo de tralha, latas velhas, jornais velhos, montes de lixo que a avó descobriu no quartinho do anexo que vivia trancado.

Susto ainda maior foi descobrir que antes das travessas de capeletti e dos pratos de alcachofra, Matilde ganhava a vida no porto de Santos, quem podia imaginar uma coisa dessas, Matilde entretendo os marinheiros do litoral. Da vida que viveu depois da casa, só ficamos sabendo do final. Um final trágico. Um dia desceu de um ônibus e foi atropelada. Dizem que morreu lá mesmo, no meio da rua, justamente ela que era tão solitária. Cá para mim, entre todas essas vidas, Matilde ainda está ali na casa da avó, empoleirada num banco da cozinha, no deserto dos seus dois séculos de idade, eu falo com ela e ela ri aquela risada miudinha, para dentro, o rosto todo afogueado.

[Fonte: Revista Rubem, 07/12/2013]




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